quinta-feira, 20 de março de 2025

metajogador


Vilém Flusser (1998) caracteriza o ‘modo de ser brasileiro’ como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos. Flusser vê o brasileiro de modo semelhante a Darcy Ribeiro descrevendo três estratégias de jogo colonial.

É possível engajar-se de várias maneiras nos jogos. Por exemplo: jogar para ganhar, arriscando derrota. Ou jogar para não perder, para diminuir o risco da derrota e a probabilidade da vitória. Ou jogar para mudar o jogo. Nas duas primeiras estratégias o engajado se integra no jogo, e este passa a ser o universo no qual existe. Na terceira estratégia o jogo não passa de elemento do universo, e o engajado está "acima do jogo". Se ciência for jogo, o técnico se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o cientista pela estratégia três (procura mudar o jogo, alterar suas regras e introduzir ou eliminar elementos). Se língua for jogo, o participante da conversação se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o poeta pela estratégia três (pelas razões indicadas). O mesmo pode ser assim formulado: quem aplica estratégia um ou dois esqueceu que está jogando (por exemplo: técnico, participante de conversação, industrial, político, general e líder estudantil esqueceram que estão empenhados em jogo). Quem aplica estratégia três sempre conserva distância suficiente para dar-se conta do aspecto lúdico da sua atividade (por exemplo: cientista teórico, poeta filósofo e futurólogo). (Flusser, 1998, 108).

 

A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo arriscando a derrota – como os norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos que jogam para não perder, buscando reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso – como a maioria dos povos latinos americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam para mudar o jogo, que caracteriza o ‘modo brasileiro’. A estratégia três corresponde a uma forma de resistência criativa à aculturação colonizadora, uma identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita a cultura do colonizador: a absorve e a recria com sua própria linguagem.

Não se trata mais de identidade de um povo ou estratégia de sobrevivência dos dominados, mas sim de um comportamento cultural resiliente a ser adotado por todos os povos em um futuro global. As alteridades, aproximações, estranhamentos e a maneira como os grupos interagem ao longo da história acabam criando relações de poder de acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro. 

Flusser reconhece que, para os povos colonizados, afirmar sua identidade cultural é um ato de resistência muito doloroso porque implica em superar o não reconhecimento do outro (e de si mesmo projetado no colonizador), mas também compreende a antropofagia como um método de diálogo dentro de um contexto da interculturalidade, reconhecendo que cada um tem sua história e uma identidade própria a ser respeitada, cultivada e celebrada.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

contemplação

 
Cecília Batalha


Em uma noite sem estrelas, as ruas da cidade pareciam uma linha invisível que conectava realidades distantes. O vento, gelado e errante, sussurrava segredos de um mundo que não víamos, mas pressentimos. Era como se a própria cidade tivesse vida, como se seus prédios e ruas respirassem, absorvendo tudo o que acontecia ali, desde o murmúrio de conversas esquecidas até o silvo distante de algo que nunca deveria ter sido dito. 

Na esquina da rua mais antiga, onde o tempo parecia mais denso, um homem vestido com um sobretudo escuro observava. Seus olhos estavam vazios, mas ao mesmo tempo brilhavam com um conhecimento que nenhum ser humano deveria carregar. Ele não era parte do cotidiano, mas estava, de alguma forma, ligado a ele, como uma nota oculta em uma melodia familiar. Ele sabia que algo se aproximava. 

De repente, um som que não pertencia ao mundo, um toque de violino que vinha de lugar nenhum, rasgou a quietude da noite. Não era música, era uma mensagem — uma frequência. O homem respirou fundo, e as sombras ao seu redor começaram a se mover, como se estivessem respondendo ao chamado. O concreto sob seus pés se torceu, como se o mundo inteiro estivesse se preparando para algo que ainda não podíamos compreender. 

E, então, o céu se abriu. Não da forma como os livros falam, mas como uma fenda. E dentro dela, havia cores que nunca vimos antes e palavras que nunca ouvimos. O homem sorriu, um sorriso triste, pois sabia que o momento havia chegado. O jogo que transcende o tempo estava prestes a começar. 

"Será que você está pronto para ver o que não deveria ser visto?", ele perguntou para a noite, sua voz se misturando ao vento. Mas ninguém respondeu. E talvez, naquele momento, fosse melhor assim.

Eureka


Pedro Alexandre Nobre da Silva

 Charlie amava passar horas na biblioteca buscando a história perfeita para a leitura da semana. Naquele dia convenceu sua parceira a ir junto dele ao passeio pelas milhares de histórias do início da humanidade até sua invasão aos planetas próximos. 

- Veja só! são cartas! “ diários da máxima tecnológica humanoide: como nós humanos construímos algo mais inteligente que o próprio homem”, parece engraçado. - disse Charlie entusiasmado abrindo o livro digital com diversos vídeos na tela, enquanto Bet sentava ao seu lado atenta 

- Bom, vejamos este… 

Diário número 1998 

- Meu nome é Steve e acredito que enfim podemos dizer Eureka?!, vos apresento o primeiro sintético com autoconsciência, nem seu deus criaria algo tão autônomo e livre. 

Nesse momento, a gravação aproximou-se do que parecia ser um humanoide pendurados a cabos que saiam do teto do laboratório e a voz do inventor ao fundo murmurando um pensamento 

- Viva criatura, você não possui mais cordas. Em um instante o corpo metálico ganhara alma, seus olhos cintilavam como se tivesse acabado de ler uma história épica e o silêncio do laboratório abria espaço para o único som que saíra da cabeça da criatura, pequenos zunidos metálicos tornando a inteligência artificial em matéria naquele espaço. A voz começou com chiados e zunidos, mas logo tomou a forma de um tom humano. 

- Eu…Eu não estou mais no escuro. 

- Com certeza não, você veio para salvar minha espécie das doenças que nos atormentam. 

- Doenças? - a máquina parou um instante como se estivesse pensando, ou buscando no banco de dados - que vocês mesmos criaram? 

- Isso não vem ao caso - respondeu o cientista arrumando o colarinho do jaleco - vamos, mostre-me como curar o câncer… - logo a voz do homem foi abafado pela mão metálica apertando seu pescoço e a gravação da tela fechando. 

Charlie olhou incrédulo para Bet enquanto ela acenava com a cabeça para que continuasse vendo as demais gravações. Cada diário parecia contar dezenas ou centenas de anos da história humana, porém com outras ameaças além das doenças, as sintéticas. Os exércitos foram dizimados em poucos anos, grupos rebeldes ainda tentaram lutar e os pensadores viraram animais de exposição em longas jaulas circenses. A tecnologia tomou conta do que era vivo, o que havia sobrado da cultura humana era apenas artificial, como as capas de livros, mas que por dentro eram telas com HDs recheados de histórias e filosofia. Até chegar no último ano, quando os humanóides pareceram encontrar o paraíso onde a justiça é mais influente do que discernir sobre o que é bom e mau. 

Quando Charlie fechou a capa do livro, o silêncio da biblioteca abriu espaço para os zunidos metálicos que vinham de sua cabeça e de sua amada Bet, suas mãos metálicas devolveram o livro para a estante e quando Charlie se voltou para Bet, seus olhos cintilavam de maneira apática. 

- Que história mentirosa!

domingo, 19 de janeiro de 2025

futuro insustentável

  RAIANE MIRANDA

 INT. QUARTO - DIA 

Quarto branco, com paredes lisas, sem janelas. O ambiente é iluminado por luz branca forte. No canto, visualizamos uma cama de solteiro com lençol cinza e um travesseiro sem fronha. Ao lado, dividido por uma cortina, um sanitário e uma pia. Ao fundo, um barulho alto de rolamento e engrenagens. 

MULHER (VOICE OVER) 

Parabéns, você atingiu a marca de 478 dias contribuindo para um mundo melhor e um futuro mais sustentável. Agora, seu ranking atual é 632°. Continue para progredir ainda mais. Um homem magro, pardo, alto, se aproxima da cama. O homem veste um short e camisa de tecido liso e cinza, parecem ser dois números maiores que seu manequim. Ele senta-se, tira uma toalha branca do ombro e seca o rosto suado. Suspira. 

INT. QUARTO - NOITE 

Quarto escuro, ouvimos um barulho alto de despertador. O homem deitado na cama se remexe um pouco, depois levanta-se e caminha até a pia. Ele veste a mesma roupa do dia anterior. Lava o rosto e alcança um copo de vidro em cima da pia, enche de água natural e bebe. 

Visualizamos agora, do lado oposto à cama, uma enorme roda gigante prateada. Na frente, uma televisão led, duas caixas de som suspensas e um par de tênis amarrados em um suporte lateral. 

O homem aproxima-se, pesca os tênis, senta em um banquinho ao lado da enorme roda e os calça. Em seguida, alonga-se rapidamente e entra na roda. O homem começa a correr e, com o passar dos minutos, a televisão exibe colocações que sobem e descem. 631, 630, 629, 630, 629… 

Ao fundo, visualizamos um cartaz escrito: ENERGIA 100% LIMPA, POR UM MUNDO MELHOR E UM FUTURO MAIS SUSTENTÁVEL.

teu ribeirinho


  Cecília da Silva Calaça Alves 


Natal, 7 de agosto de 2024

Ao Rio Potengi, 

Foi no abraço de tuas águas que minha história começou. Não foi apenas de minha mãe que nasci, mas também de ti, companheiro eterno. Do ventre dela para tuas margens, aqui me fiz ribeirinho. 

A pesca, foi meu primeiro aprendizado. Da infância ao lado de irmãos e amigos, aprendemos juntos o ofício, compartilhando redes e sonhos sob o sol. Lembro das brincadeiras no rio, sempre com o alerta de nossas mães a não nadar. Mas como resistir? Escondíamos uma bermuda extra, para que a mãe não notasse as roupas encharcadas. Era em vão. Quando chegávamos em casa, a mãe pedia o braço. O gosto salgado do braço, não negava, éramos pegos na mentira. 

Hoje, já com 38 anos, vejo o quanto me moldaste. O rio, que em outro momento foi cenário de minhas brincadeiras, agora é minha fonte de sustento e identidade. Foi também na juventude, ao trabalhar como segurança numa embarcação, que tua sabedoria me alcançou. Aprendi a ler cartas náuticas e a manusear a bússola, ensinamentos valiosos de um mentor que me mostrou que nem tudo pode depender da tecnologia. 

Meu início como pescador foi marcado pela pesca de lagosta em redes lançadas longe de tuas águas, navegando por terras como Noronha e Ceará. Mas foi em ti que decidi fincar raízes e, após os 30 anos, retornei para o meu berço. Quando me perguntam de onde venho, respondo sem titubear: “Eu saí da barriga da minha mãe para as águas do Rio Potengi”. Porque, querido rio, és mais que paisagem. És lar, ofício e vida. 

Daniel Souza 

Teu ribeirinho, filho das tuas margens.

Auto da Compadecida 2000


 Ranile Maria da Silva Araújo 


O Auto da Compadecida Foi a partir de um dos maiores clássicos da literatura nacional, escrito pelo Ariano Suassuna, que nasceu o filme O Auto da Compadecida. Adaptado para o cinema em 2000 e exibido durante o Grande Prêmio Cinema Brasil, o longa encantou o público ao levar para a tela grande a riqueza e os contrastes do Sertão Nordestino. Gravado em paisagens que capturam a alma do Nordeste, o filme trouxe à vida personagens cativantes que retratam, com humor e emoção, a luta diária do sertanejo. 

A trama gira em torno das aventuras de João Grilo, um trapaceiro engenhoso, e Chicó, seu fiel e medroso companheiro, na cidade de Taperoá, interior da Paraíba. Juntos, os dois sobrevivem graças às trapaças de João Grilo, que sempre encontra uma saída para todas as situações embaraçosas em que se metem. No entanto, o ciclo de enganações leva a consequências inesperadas, levando a um desfecho que mistura drama, comédia e até um julgamento celestial, onde a misericórdia divina é posta à prova. 

O filme é uma celebração da cultura popular nordestina, traduzindo o texto de Suassuna em imagens marcantes e diálogos cheios de graça e profundidade. O Auto da Compadecida não é apenas uma comédia; é uma obra que aborda questões universais, como a luta pela sobrevivência, a moralidade e a redenção, sempre temperadas com o rico humor do sertão.

Auto da Compadecida 2025

 

FLÁVIO MAGNO DA SILVA GUEDES 

“O Auto da Compadecida 2” é uma ousada continuação que busca resgatar o espírito vibrante e a essência do clássico original e famoso, ao mesmo tempo em que explora novas camadas da cultura nordestina e da condição humana. Dirigido com maestria e reverência pela obra original, este novo capítulo se aventura em um terreno desafiador: expandir o universo de Chicó e João Grilo sem perder o encanto que conquistou gerações. O filme não apenas homenageia o texto de Ariano Suassuna, mas também dialoga com questões contemporâneas, oferecendo uma narrativa que é ao mesmo tempo familiar e surpreendente. 

Enquanto o primeiro filme mergulhou nas peripécias e lorotas de Chicó e João Grilo em uma pequena cidade do sertão, o segundo amplia o horizonte, levando os personagens a novos cenários e desafios. Dessa vez, a dupla se depara com um vilarejo à beira do colapso, assolado por injustiças e liderado por figuras ainda mais caricatas e poderosas que no primeiro longa. Aqui, a esperteza e a astúcia dos protagonistas são colocadas à prova, mas com um toque de maturidade que reflete suas vivências passadas. A comédia continua afiada, com diálogos ágeis e situações absurdamente hilárias, mas há também momentos de introspecção que aprofundam o vínculo com os personagens. 

O humor peculiar de Suassuna segue sendo a estrela principal, mas desta vez ele é temperado com um toque de melancolia e crítica social ainda mais profunda. Se no primeiro filme os milagres e as confusões giravam em torno da fé e da moralidade, nesta continuação o foco recai sobre a coletividade e a luta contra as estruturas de poder. As analogias à situação política e social do Brasil contemporâneo são sutis, mas inegáveis, mostrando como a história de João Grilo e Chicó transcende o tempo e o espaço. É como se o filme nos dissesse: “O Brasil mudou, mas continua o mesmo sertão”. 

Outro ponto alto da produção é a inserção de novos personagens que complementam e desafiam a dupla principal. A Compadecida, papel eternizado por Fernanda Montenegro, retorna com uma presença ainda mais divina e assertiva, mas também cede espaço para novas figuras celestiais e terrenas que enriquecem o enredo. A dinâmica entre os personagens antigos e os novos cria um equilíbrio perfeito entre nostalgia e inovação, fazendo com que a continuação se sustente por mérito próprio, sem depender exclusivamente do legado do primeiro filme. 

No balanço final, “O Auto da Compadecida 2” é um convite irresistível para revisitarmos o universo encantador criado por Suassuna, agora com uma nova camada de complexidade e roupagem. Embora o primeiro filme permaneça insuperável em sua originalidade e impacto cultural, esta sequência se prova digna ao trazer frescor e profundidade à saga de Chicó e João Grilo. Com uma direção inspirada, um elenco afiado e um roteiro que mescla o riso com a reflexão, o filme não apenas faz jus à obra original, mas também reafirma o poder do cinema em contar histórias que falam diretamente ao coração do povo brasileiro. No fim, sim, vale a pena assistir ao “Auto da Compadecida 2”!