Primeira aula:
OFICINA DE REDAÇÃO CRIATIVA
Estudos sobre a Criatividade
terça-feira, 16 de abril de 2024
Curso de técnicas de criatividade
a vida é um jogo?
Uma pergunta simples: a vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores e perdedores? Acredito que não. Mesmo se pensarmos em competição de genes e em 'seleção natural', o critério evolucionista de Darwin da sobrevivência do 'mais forte' já foi substituído pelo critério da capacidade de adaptação e resiliência (Lamarck). A vida seleciona os mais flexíveis e resistentes.
Mas, também compreendo que a vida vem se
tornando uma competição. A vida moderna é uma aventura. Somos todos heróis a
procura do grande amor e da realização no mundo. Por isso, tornamos nossas
vidas narrativas de risco. Risco de vida, risco de não sermos amados, de não
sermos bem sucedidos. Risco do fracasso dos perdedores. A vida está se tornando
um jogo. Nesse contexto, estamos vivendo um processo de 'gamificação' das
relações sociais e das interações: a aplicação das estratégias e do design competitivo
dos jogos em outras práticas sociais, com o objetivo de aumentar o engajamento
dos participantes.
A gamificação das relações sociais se dá a
nível estrutural, como disputas entre instituições sociais; como se a sociedade
se tornasse um imenso mercado. Já a gamificação das interações se dá no micro
espaço do cotidiano, acirrando a competição entre as pessoas em torno
diferentes objetos de disputa, como “se a vida fosse um jogo”.
Atualmente, o aprendizado está se
'gamificando', tornando-se lúdico e competitivo. As antigas disciplinas estão
se tornando 'narrativas seriadas ', em que cada aula é um episódio
(representando um conteúdo específico) e um capítulo de um arco narrativo maior
(correspondendo a um estágio de um conjunto de conteúdos cumulativos). As
avaliações são desafios para que o aluno assimile o conteúdo específico e
avance em relação ao conjunto de conhecimentos sequenciais.
A gamificação representa a inserção do
risco controlado – a incerteza lúdica - no aprendizado e na própria vida. Para
tanto, não é preciso muita tecnologia. Basta viver feliz e consciente das
próprias limitações, mas sempre buscando por desafios para transcendê-las.
O conceito teve grande repercussão na
área de comunicação: o livro Gamificação em Debate (SANTAELLA, 2018)
traz um coletânea importante de autores de diferentes áreas, demonstrando que a
atividade lúdica aplicada a outras atividades não promove apenas engajamento
motivacional, mas, sobretudo, em mudanças profundas de comportamento. Para
esses autores, a gamificação retoma os aspectos lúdico e criativo que todos têm
incubado, ampliando a qualidade cognitiva do aprendizado e do desempenho.
Por outro lado, existem também os
contrários à gamificação, que vêem o processo de modo colonizador e exclusor da
maioria, uma vez que apenas as elites têm acesso aos jogos eletrônicos, à
robótica e a um ensino mais individualizado. A gamificação, assim, aumentaria
muito mais a desigualdade social e a exclusão cultural. Os jogos nos tornam
mais competitivos e menos solidários, reforçando assim, do ponto de vista
pessoal, os imperativos da sociedade global capitalista.
Há também o trabalho do professor Marcos
Nicolau (2018a, 2018b, 2018c, 2018d, 2019, 2021) da UFPB sobre ludosofia -
conceito que desloca o foco da gamificação de um artificio de engajamento
motivacional para o aprendizado existencial dos jogos em si.
Por que jogar?
Jogar ensina a viver, a perder, a ganhar,
a lidar com as emoções, a ser ético - independentemente do conteúdo que está
sendo ensinado de forma colateral. Os
jogos, além da memorização e visualização do conhecimento em diferentes áreas
(história, geografia, biologia, matemática, etc), também desenvolvem o
amadurecimento emocional, a aceitação das perdas, a empatia com os outros.
Agora nossa questão aqui é - levando em conta os
prós, os contras e os dialéticos - pensar da perspectiva pedagógica, como
formar protagonistas, desenvolvendo competências e habilidades sócio emocionais
através de jogos?
E, do ponto de vista social: os jogos podem, ao
contrário do que se pensa, contribuir para construção de sua sociedade mais
solidária e menos competitiva? A democracia é um jogo?
E ainda, em uma perspectiva pessoal: Como
transformar a própria vida em uma aventura criativa? Como inserir a 'incerteza
lúdica' em nossas vidas de modo decolonial e criativo?
NICOLAU, Marcos. Dezcaminhos
para a criatividade. 2. ed. João Pessoa: Ideia, 2018a.
https://drive.google.com/file/d/132ZVUcLz5vXNZXe9yoB7Do-rpUVChbU5/view
____ Introdução à
criatividade. 2. ed. João Pessoa: Ideia, 2018b.
https://drive.google.com/file/d/15bErzpm3ZEgPJ9rag3gSqZyjVGXaufHe/view
____ Ludosofia: a
sabedoria dos jogos, 2ª ed. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2018bc.
https://drive.google.com/file/d/1zjiOORuX2xYXeZydvOREKqRO1YicJWUJ/view
____ Razão e
criatividade: tópicos para uma pedagogia neurocientífica. 3. ed. João
Pessoa: Ideia, 2018d.
https://drive.google.com/file/d/1Eg2UCSTMMipyp54ooOCxhQ1U4FCHZKOA/view
____ Games e
gamificação: práticas educacionais e perspectivas teóricas. João Pessoa:
Ideia, 2019.
https://drive.google.com/file/d/1Zenw8rDY-aSfeymKaj61FjJR44_dpDBG/view
____ Ludoaprendizagem
desplugada: pensamento computacional com jogos de tabuleiro no ensino
fundamental. João Pessoa: Ideia, 2021.
https://drive.google.com/file/d/12YJMuK17waFVHJ7t16qUW8jxiTeAd-N4/view?usp=sharing
um modo de ser
O lúdico como discurso e 'modo de ser'
O professor André Lemos, a partir de sua
teoria Ator-Rede com Latour, descreve o lúdico como um modo de existência
moderno.
"A modernidade caracteriza-se por uma forma específica
de enquadramento da atividade lúdica, seja para infantilizá-la, seja para
ajustá-la como um negócio (do entretenimento). Acredito que a dimensão lúdica
seja uma das chaves para empreender uma antropologia dos modernos, já que o que
chamarei aqui de “seres do jogo” nos constituem, nos provocam, “jogam” com a
nossa subjetividade e com o nosso corpo por intermédio de artefatos
(“brinquedos fetiches”), narrativas e regras específicas."
Lemos apresenta os modos de existência,
propõe mais um modo (lúdico), apontando para a existência de “seres do jogo”, e
estabelece correlações deste com outros modos, como o da técnica, o da
metamorfose e o da ficção. Essa forma ontológico de pensar tem suas vantagens e
suas desvantagens. Mas, se pensando de forma mais epistemológica e
arqueológica, visualiza-se melhor que o lúdico é anterior aos outros modos de
ser e que passou por transformações históricas em virtude de sua relação com a
tecnologia e com a narrativa.
Isso em dois sentidos distintos e
complementares. O lúdico é anterior ao Outro – para Orlandi (análise
discursiva) e para Winnicott (psicologia infantil); e o lúdico como contexto
histórico é anterior à escrita e à história – como defende Flusser entre
outros.
Orlandi (1980) sugere um modelo
tipológico dos discursos segundo a participação dos interlocutores na produção
do Sentido.
·
Discurso
autoritário - O emissor impõe as suas
necessidades de transmissão à realidade-referente da linguagem. O discurso
tende à ‘paráfrase’, ou seja, à repetição da identidade do sentido e da ordem
subjacente à sua transmissão. O resto é ‘ruído’.
·
Discurso lúdico - O receptor (ou a percepção) se apropria da
realidade-referente, submetendo a transmissão a fatores aleatórios e/ou às
necessidades de desenvolvimento da linguagem. O discurso aqui tende à
polissemia e à multiplicidade do sentido.
·
Discurso
Polêmico - O sentido é construído pela
reversibilidade dialógica entre os polos interlocutores da linguagem. O
discurso, neste caso, é uma ‘tensão’ entre a paráfrase e a polissemia, entre a
identidade e a multiplicidade do sentido.
Toda imposição de realidade referencial e
toda linguagem instituída pelo emissor é discurso autoritário, em oposição à
semiose absoluta do receptor, os sonhos e o simbólico, o discurso lúdico. Isso
aponta para uma discrepância estrutural entre o método científico e o objeto
lúdico, uma inadequação entre brincar e estudar.
No brincar, o lúdico é anterior ao outro.
Benjamin, Winnicott e outros falam da relação entre eu e brinquedo como uma
preparação para o outro. Muitos pensadores de ensino tradicional consideram que
o começo do aprendizado começa o letramento e as quatro operações, que a
socialização da escola estabelece o final da zona de conforto infantil. O
aprendizado torna-se sério e sem graça porque exige concentração contínua e
disciplina corporal. Jogar é uma prática mista entre brincar e aprender. E 'jogar a dois' (ou mais) é simular
uma situação hipotética através de disputa simbólica. A socialização e a
criatividade são estimuladas ao máximo pela dinâmica cooperação/competição. O
que nos leva a pensar que o verdadeiro objetivo de jogar é desenvolver a
criatividade.
Na
perspectiva de Flusser, a pós-história ou pós-escrita está, através dos meios
de comunicação, resgatando a ludicidade dos jogos anteriores à escrita e
produziando a 'gamificação das relações sociais e das interações'. A
gamificação acontece dentro das instituições quando o modelo do jogos passa a
organizar outras práticas sociais. Flusser condena a gamificação, o
divertimento e o entreterimento como formas de domesticação do lúdico.
No
entanto, a gamificação do aprendizado faz parte de transformarmos nossas vidas
em aventuras de risco. O aprendizado das relações dentre o eu e o outro está se
configurando como uma Jornada existencial. Para alguns a jornada do herói; para
outros, da heroína. 'Aprendizado' é a prática e produto de aquisição e
assimilação de ganhos simbólicos nas relações entre Eu e Outro. Por 'simbólico'
entendo não apenas o conhecimento mas também a sabedoria; não apenas a
informação mas também a incorporação de habilidades e o desenvolvimento de
competências. 'Simbólico' também representa visibilidade, status, prestígio. O
que, de modo secundário, também se aplica a ideia de aprender, como resultado
de nossas interações. O aprendizado simbólico é a aquisição de repertório e da
prática de performance. O jogo ensina a saber perder e a saber ganhar, a saber
se colocar no lugar do outro, seja do ponto de vista interpessoal ou do
intercultural, o jogo ensina a capacidade de adaptação e de diálogo.
O lúdico como simbólico
Dietmar Kamper (1998)
estudando o jogo como metáfora da vida, chama a atenção sobre a discrepância
estrutural entre "o método e o objeto" desta pesquisa, sobre a
inadequação entre a atividade lúdica e o rigor científico dos discursos que
pretendem estudá-la.
Norval Baitello Jr (1997, 58), a partir
das ideias de Walter Benjamin (1985), afirma que essa dificuldade metodológica
apenas espelha a dicotomia cultural e cognitiva entre o mundo adulto (e a
lógica das "coisas necessárias") e o universo infantil (e do
"aparentemente supérfluo").
Winnicott (1975) é o grande estudioso do
Brincar e deste universo como um espaço alternativo à realidade imposta pela
cultura. A alfabetização e o aprendizado das quatro operações matemáticas
básicas exige concentração e disciplina. Com elas, surge o mundo sério dos
adultos, em que os atos têm consequências e o lúdico é visto como uma
irresponsabilidade.
Edgar Morin (1979:116-117) crê que a
construção histórica do Homo Sapiens (homem do saber racional) teve como efeito
colateral o (sub)desenvolvimento do Homo Demiens (homem-louco). O primeiro
corresponde ao universo adulto e o último, ao mundo da desordem e
irracionalidade reprimida no inconsciente em seus diferentes aspectos.
Vilém Flusser (1998) elabora a noção de
'homo ludens', como a superação dessa dicotomia entre razão e loucura e,
acrescentamos, como um retorno ao nossa criança interior. Além disso, Flusser
caracteriza o 'modo de ser brasileiro' como um protótipo global do homo ludens,
que não se identifica nem com a vitória dos colonizadores nem a derrota dos
colonizados, mas tem como estratégia de longo prazo a resistência criativa à
aculturação colonizadora.
Porém foi Ivan Bystrina (1995) quem
melhor definiu o papel cognitivo da atividade lúdica em relação ao pensamento
lógico. Para ele, há três níveis inter-relacionados de codificação de
mensagens.
·
O código
primário, formado através de sinais
simples e se organizam a partir da experiência e de regras predeterminadas dos
sistemas vivos em sua evolução. Chamamos esse código de BRINCAR.
·
O Código
secundário, uma consciência coletiva
através de signos construídos a partir de uma estrutura comum, um sistema
institucional de cognição coletiva – para o qual é necessário ESTUDAR.
·
E o Código
terciário representa um nível de codificação cultural, para além das
instituições sociais, e que constitui em uma “segunda realidade” para perpetuar
mensagens para futuras gerações.
Esta “segunda realidade” formada por
nossos sonhos e desejos profundos está presente no JOGAR e resulta da perda de
nexo reconhecível com as necessidades imediatas de sobrevivência. A segunda
realidade é o "não-sério" e os jogos são uma das portas deste
universo simbólico (ao lado do sonho, das doenças mentais e do extase místico
induzido). A classificação de Bystrina equivale a dizer que o Brincar
corresponde ao corpo e a mídia primária; o Estudar, à linguagem estruturada e a
mídia secundária; e o Jogar, à simulação de risco no futuro e aos meios de
comunicação. A segunda realidade tem o objetivo de antecipar e simular
situações possíveis de se configurar. É a simulação dos futuros possíveis que
fornecem probabilidades para o presente se organizar.
A teorização sobre jogos
começou com os gregos, levando em conta a forma como o inesperado ou o acaso se
manifestam. Nesse sentido, existem quatro tipos ideais de jogos: Agon, Alea,
Mimicry, Ilynx.
·
Agon, os Jogos de Azar (a roleta, por exemplo). O
ruído aqui é Objetivo e equivale ao acaso. Calcula-se a probabilidade (1/6 de
chances em jogo de dados, por exemplo) e compara-se com os resultados
empíricos. Obtém-se, então, um quadro analógico entre um modelo ideal (as "condições
iniciais") e os resultados.
·
Alea, os Jogos de Adivinhação (como o jogo de
búzios). O ruído é Subjetivo e dificulta a comunicação com o futuro. Aqui não
existe um "resultado errado" ou discrepante do modelo, todo ruído é,
por definição, ignorância de quem não entende.
·
Mimicry, os Jogos de Performance são aqueles em que o
desempenho individual é determinante. O ruído aqui é, em parte ambiental, em
parte cognitivo. O golfe, o surf e o "jogo de paciência" são alguns
dos jogos que combinam acaso e autoconhecimento. Para estudar tais jogos é
preciso tanto considerar as variações e discrepâncias probabilísticas de cada
jogo (compreendido como um conjunto de regras e possibilidades lógicas) como
também os diferentes níveis de intencionalidade e consciência dos jogadores.
·
E,
finalmente, Ilynx, os Jogos Competitivos, que tanto podem ser de
estratégia pura (como o xadrez, por exemplo); como baseados na força, na
velocidade ou em outras qualidades físicas e psicológicas. Estes jogos é que
geralmente são estudados na chamada Teoria de Jogos de Soma Zero. O ruído aqui
é Intersubjetivo e consiste em uma forma enganar o adversário ou de ser
enganado por ele.
Na prática a maioria dos
jogos é uma combinação dessas modalidades ideais. Um jogo de pôquer ou de
futebol implica tanto em sorte (ou escapar ao ruído objetivo), assertividade
(ou não se confundir com o próprio ruído subjetivo) e blefe (ou enganar e não
ser enganado pelo ruído intersubjetivo). Nesta classificação, o interessante é
a diferença de tipos de ruído. Nos primeiros jogos (de Azar, de Adivinhação e
de Performance) o ruído resulta de nossa própria ignorância e corresponde à
relação entre o homem e a natureza; enquanto os jogos competitivos (ou de soma
zero) o ruído é utilizado para enganar o adversário e corresponde a relação dos
homens entre si (WIENER, 1954).