segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
a incerteza lúdica
quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
A vida em jogo
Viver em sociedade é, de muitas formas, participar de um jogo complexo, invisível e constante. Nele, cada indivíduo ocupa posições que mudam ao longo do tempo, enfrenta desafios impostos por estruturas sociais e precisa tomar decisões que impactam não apenas seu próprio caminho, mas também o do coletivo. A expressão “a vida em jogo” revela justamente essas tensões: a vida como algo que se disputa, que se negocia, que se coloca em risco e que se tenta valorizar em meio a pressões diversas.
Na sociedade contemporânea, a vida é posta em jogo quando as oportunidades não são igualmente distribuídas. O acesso desigual à educação, ao trabalho, à saúde e aos direitos básicos define quem avança e quem fica à margem. Muitas vezes, o mérito individual parece decidir tudo, mas por trás dele encontram-se condições sociais que influenciam profundamente o destino das pessoas. Nesse cenário, a sobrevivência pode se tornar um desafio diário, principalmente para aqueles que vivem em contextos de vulnerabilidade.
Além disso, a vida também é colocada em jogo na forma como lidamos com expectativas sociais. Há pressões para ser produtivo, bem-sucedido, competitivo e resiliente, como se a existência fosse uma corrida em que não é permitido parar. Essa lógica transforma a vida em um tabuleiro onde cada movimento é calculado, e o erro pode custar caro: desgaste emocional, adoecimento mental, frustração e sensação de insuficiência.
No entanto, mesmo em meio a essas dinâmicas, a sociedade também é lugar de encontros, trocas e solidariedade. Se a vida está em jogo, ela também está em constante reinvenção. As relações humanas, os movimentos sociais, a arte e a cultura criam espaços de resistência e possibilidades. Eles mostram que, embora existam regras inflexíveis, há também maneiras de uestionar, subverter e reconstruir o jogo. É nesta capacidade coletiva de transformar realidades que reside a esperança de uma vida mais justa.
Portanto, compreender a vida em jogo na sociedade é perceber que nossas escolhas e nossos caminhos não são apenas individuais, mas atravessados por fatores sociais, econômicos e culturais. É reconhecer que a vida vale mais do que qualquer competição e que o verdadeiro avanço acontece quando o jogo deixa de ser uma disputa desigual e se torna um espaço de convivência, dignidade e respeito para todos.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2025
Cordel da Subjetividade no Cinema
Na tela que brilha e fascina,
o olhar se mistura ao enredo.
Tern plano que mostra o que e claro,
tern mente escondendo o segredo.
Entre a câmera e a memória,
surge o jogo dover com o medo.
lntriga nos traz o exemplo,
de um ponto de vista alinhado.
Mas Nolan, Bunuel e Fellini
fazem tudo ficar embaralhado.
Misturam o real com o sonho,
deixando o sentido dobrado.
'As vezes, o saber,e restrito,
mas sem mente a nos revelar.
Como A beira do abismo nos mostra,
onde mal da pra escutar.
Já há filmes com vasto alcance
que nos fazem par dentro olhar.
Flashbacks criam conexões,
entre o antes, o agora e o porquê.
Sansho nos dá essa ponte
entre o filho e a mãe, sem clichê.
E em Hiroshima, a memória
e o que mais nos faz entender.
O sexto sentido desliza,
entre over e o pressentir.
Nos mostra o valor da ausência,
no silêncio que faz refletir.
Subjetivo não é só lembrar,
É o jeito de nos conduzir.
No cinema, a mente é estrada
e o olhar, um roteiro sem fim.
Entre a forma e a emoção contida,
há um mundo dentro de mim.
Objetivo ou subjetivo,
todo plano começa assim.
quinta-feira, 20 de novembro de 2025
o sonho de mil gatos
"É o sábio que sonha ser uma borboleta ou a borboleta que sonha ser um sábio que sonhava que sonha ser uma borboleta?" (Pensamento atribuído ao Sábio chinês Chuang Tzu, no século IV a.C.).
O mundo dos sonhos sempre se apresentou ao homem como uma realidade paralela ao universo observado através dos sentidos. E, bem cedo, alguém deduziu que o universo deveria ser um sonho de Deus. E o Sonho adquiriu vida própria, para alegria do grande Sonhador, passando a ser modelado por sonhadores menores, os homens de espírito ou as criaturas criadoras. Destaque-se, no processo histórico de construção do grande sonho coletivo da humanidade, a contribuição de quatro sonhadores nesse inventário dos sonhos vivos: Platão, Santo Agostinho, Descartes e Castaneda.
Antes, no entanto, é preciso distinguir sonho pessoal de sonho coletivo.
1. O sonho pessoal
Na Babilônia, na China, nos Vedas indianos, nas tradições indígenas das Américas, da África e da Oceania, e em todas as religiões que se tem notícia, os sonhos desempenham um papel fundamental. Os sonhos são a base de todos os sistemas de crença humanos. Campbell dizia que os “mitos são sonhos partilhados, sonhos são mitos privados”. Porém, na verdade, os povos possuem mitos e os sonhos possuem pessoas. Os sonhos são pessoais.
Na maioria das vezes, os sonhos pessoais são interpretados como mensagens cifradas dos deuses, dos ancestrais ou de seres malignos. E o Talmud diz que “um sonho não interpretado é como uma carta que não é aberta”. Os gregos (Hipócrates e Aristóteles) davam uma importância especial ao diagnóstico de doenças através do sonho. Artemidoro de Daldis, no século II d.C., distinguia o sonho comum, referenciado no passado biográfico; do sonho premonitório das ‘almas virtuosas’, referenciadas no futuro.
Na modernidade, para objetividade científica, o sonho, a mais subjetiva das atividades humanas, permaneceu sem sentido ou significado até que Sigmund Freud proclamou que “o sonho é a realização (simbólica) de um desejo (censurado)”.
Ou, mais precisamente: o sonho para Freud é um conglomerado de formações psíquicas moldado pela história biográfica pregressa do indivíduo, com múltiplos significados, que tem por função proteger contra a dor e satisfazer os desejos reprimidos pela censura.
Em A Interpretação dos Sonhos (1990), Freud lançou as bases da ciência hermenêutica moderna ao distinguir, na decifração de fenômenos oníricos, o conteúdo manifesto do latente ou oculto. Para ele, todo sonho seria ‘a realização simbólica de um desejo inibido’, mas nem sempre a expressão deste desejo é clara e inequívoca, ao contrário, haveria mecanismos psicológicos responsáveis pelo mascaramento simbólico dos impulsos recalcados. Freud chamaria esses mecanismos: condensação, deslocamento, processo de elaboração secundária, simbolismo e dramatização.
Por condensação se entende o processo segundo o qual um conteúdo manifesto apresenta mais de um conteúdo latente de forma simplificada. Já deslocamento, se define como o processo pelo qual a carga afetiva se destaca de seu objeto normal para fixar-se num objeto acessório. A elaboração secundária se revela como o processo pelo qual, à medida que se aproxima a vigília, a produção onírica é reorganizada por uma lógica racional. Assim, nos lembramos dos sonhos sempre de trás para a frente, apagando seus detalhes e paradoxos. A dramatização consiste no processo através do qual os conteúdos conceituais são substituídos por imagens visuais. A simbolização se distingue da dramatização porque a dramatização é pessoal; enquanto o símbolo é universal.
Para Freud, o processo de simbolização se explicaria ainda através da censura e dos quatro movimentos de defesa do ego diante da crueza dos seus instintos e desejos objetais: identificação, projeção, introjeção e sublimação. É necessário assinalar que a noção de sublimação na interpretação dos sonhos será o ponto central das divergências entre Freud e Jung, uma vez que o discípulo discordava que o simbólico fosse apenas um resultado do caráter determinista e compulsivo do inconsciente biograficamente recalcado. Jung viu nos sonhos de seus clientes elementos mitológicos organizados de num modo prospectivo (e, muitas vezes, premonitório) chegando à conclusão de que o inconsciente não é apenas uma mera instância de repetição do passado individual, mas comporta ainda a sua transcendência psíquica e fenômenos mais complexos, de caráter coletivo e transpessoal.
Para Jung, as imagens oníricas se oferecem como narrativa em que o protagonista é o próprio narrador: o sonhador. Do ponto de vista pessoal, há uma função psíquica compensatória entre as relações dos eixos Ego-Self e Consciência Individual-Inconsciente Coletivo. O sonho se apresenta sempre como uma mediação e uma compensação entre esses quatro extremos. Mas, há também uma função transcendente: aquele que presta atenção aos próprios sonhos entre em processo de desenvolvimento (a individuação) em que sua consciência se religa aos valores éticos e estéticos fundamentais da matriz arquetípica. Assim, o sonho, mais que expressão involuntária de um problema passado, é uma resposta elaborada pelo inconsciente, uma reorganização prospectiva, uma solução voltada para o futuro. (HALL,1985)
Ainda no âmbito da psicanálise, outras abordagens foram desenvolvidas recentemente como a de Tales Ab’Saber (2006). O ‘trabalho de sonho’ se torna um método de desenvolvimento ‘a dois’: tanto na transferência analítica inspirada em Bion (o analista sonha o sonho do analisado, e este, por sua vez, o toma como objeto de sonhação), como na mediação sujeito-objeto (na equiparação entre sonhar e brincar, entre o onírico e o lúdico) observada por Winnicott).
2. O sonho para ciência
Mas foi no campo das Neurociências que o estudo dos sonhos pessoais mais prosperou. Em 1952, Leitman e Aserinsky (2003) estabeleceram, através de eletroencefalogramas, o ciclo fisiológico do sono, composto por pelo menos três estágios com diferentes propriedades neurofisiológicas: o estágio hipnagógico (início do sono em que os pensamentos consistem em imagens fragmentadas e pequenas cenas), o estágio do sono de ondas lentas (em que as ondas cerebrais do neo-cortex apresenta freqüências baixas e grande amplitude) e o estágio do sono REM (rapid eye moviment).
Durante a fase do sono REM ou sono profundo, o cérebro apresenta um funcionamento semelhante ao estado da vigília em momentos da maior atividade (confronto com perigo, luta pela sobrevivência, contato sexual iminente) – o que levou os cientistas a concluírem que os sonhos aconteciam exclusivamente neste estágio.
Durante duas décadas, o sono REM foi sinônimo fisiológico do sonho e a idéia de Freud, de que os sonhos são produzidos por processos mentais era compatível com o conhecimento científico do funcionamento cerebral.
Até 1977, quando Hobson e Mc Carley (1988) descobriram o modelo de ativação-síntese e de reciprocidade interação. Para eles, o cérebro liga impulsos sem sentido e sentimentos a impressões sensoriais e lembranças, produzindo uma narrativa coerente a partir do aleatório. Movimentos oscilatórios simples pela qual a consciência é ligada e desligada em intervalos de 90 minutos através da interação recíproca de substâncias químicas, que nada tem haver com processos mentais. Hobson e Mc Carley provaram que o sono REM não é o equivalente fisiológico do sonho. Por outro lado, os cientistas reduziram a atividade onírica a um mero epifenômeno subjetivo do sono, sem nenhuma importância, uma frivolidade sem sentido de nossa mente.
Nos anos 90, Solms (1997), através de seus estudos com dopamina, reabilitou o sono REM como sonho e compatibilizou Freud novamente com a neurociência. Em seguida, Winson (1985), estudando o papel do ritmo Teta de ondas cerebrais, endossou a idéia de que os sonhos têm sentido subjetivo, podendo ainda refletir um mecanismo de processamento de memórias herdado de espécies inferiores.
E, atualmente, há uma grande polêmica entre os neurocientistas: parte considera o sonho resultante de processos meramente fisiológicos, enquanto outros acreditam que ele também é causado por processos mentais, seguindo a lógica freudiana.
Estudando a propagação, criação e simulação de memórias e fazendo uma ampla revisão bibliográfica e uma síntese atual da pesquisa neurocientífica sobre o sono, Ribeiro e Nicolelis (2004) defendem que o onírico tem um papel importante na consolidação de vários tipos de memória, desempenhando um papel fundamental no aprendizado. Observando como o gene zif 268, associado ao aprendizado, é ativado seletivamente durante o sono REM, os cientistas chegaram à conclusão que o sono REM tem criatividade. Embora o fortalecimento e a reestruturação das memórias sejam funções cognitivas do sonhar, há ainda uma simulação dos futuros possíveis. Os sonhos são seqüências hiperassociativas das memórias fragmentadas, que simulam eventos passados e expectativas futuras de forma a gerar soluções para os desafios cognitivos enfrentados pelo sonhador. O sonho, assim, seria uma forma de selecionar alternativas e orientar decisões (1992, 126).
Sonhar para organizar lembranças e o aprendizado ou sonhar para esquecer? Para Crick (1995) o sono REM é um processo de aprendizado ao contrário ou desaprendizado, um programa de autolimpeza que descarta as informações desnecessárias. Para Ribeiro e Nicolelis, no entanto, não há diferença: o sono REM tanto nos esquecer como organiza nossas lembranças, sendo capaz de simular situações futuras com base no processamento de informações passadas.
Volta-se, assim, ao mesmo ponto em que Artemidoro, Freud & Jung chegaram: há sonhos referenciados no passado (o sono de onde lentas) e há sonhos referenciados na simulação do futuro (o sono REM). Porém, as pesquisas de Ribeiro e Nicolelis sobre o sonho abriram um horizonte bastante amplo de estudos e atualmente há diferentes pesquisas neurocientíficas em andamento: o desenvolvimento filogenético do sonho REM em relação à evolução das espécies (RIBEIRO, 2004); o desenvolvimento ontogenético do sonho REM em relação ao crescimento infantil humano e à plasticidade do cérebro (FRANK, 2004); o estudo dos pesadelos e dos distúrbios pós-traumáticos (PERES; MERCANTE; NASELLO, 2005); entre outros.
3. O Sonho Coletivo
Para os cientistas, o sonhar é uma atividade cognitiva individual que ocorre durante uma parte do sono; mas para o xamanismo e outros aportes esotéricos, o sonho é a atividade mais abrangente e profunda, englobando a imaginação, o pensamento e os cinco sentidos. O sonhar, nessa perspectiva ampliada, se confunde com a percepção coletiva que fazemos do mundo. Como se tornou lugar comum dizer: “um sonho que se sonha só, é só um sonho; mas um sonho que se sonha em comum torna-se realidade”.
Segundo Ivan Bystrina (1995), há três níveis inter-relacionados de codificação de mensagens: o código primário ou hipo-lingüístico, em que os processos vitais são operações de câmbio informacional que operam através de sinais simples e se organizam a partir da experiência; o código secundário ou lingüístico, um sistema institucional de cognição coletiva; e o código terciário ou hiper-lingüístico ou a segunda realidade, construída para perpetuar mensagens para futuras gerações. E a segunda realidade formada por nossos sonhos e desejos profundos tem origem em quatro fontes possíveis: o sonho, as doenças mentais, o êxtase místico e os jogos.
Nesta ótica, a segunda realidade é o universo simbólico. Fossemos escrever uma história do sonhar coletivo, o primeiro passo seria o sonho da Caverna de Platão:
Acorrentados de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os prisioneiros só podem ver, do mundo exterior, as sombras projetadas no fundo da Caverna. Caso um dos prisioneiros se libertasse e retornasse ao mundo exterior, perceberia que o mundo no qual vivia era irreal e inconsciente; formada por sombras e reflexos das coisas. O prisioneiro correria sério risco de vida se, retornando ao interior da caverna, procurasse revelar aos seus antigos companheiros a irrealidade do mundo em que se encontram. Provavelmente, eles o matariam.
A história da caverna é uma alusão direta ao destino de Sócrates, professor de Platão, forçado a beber veneno pela democracia ateniense, acusado de romper a juventude. Platão chegou então à conclusão de que “não é possível ser justo em uma cidade injusta”. É preciso construir uma sociedade justa, capaz de produzir homens justos. Essa é a proposta de A República (PLATÃO, 2004), o primeiro livro que se conhece sobre Utopia, a idéia de construção de uma sociedade perfeita, produtora de homens perfeitos. E o sonho da Caverna dividiu o mundo em duas realidades: uma sensível e ilusória e outra; distante, verdadeira e inteligível.
Santo Agostinho, outro mestre na arte do sonhar, fez do interior da caverna a memória das coisas dos homens e do mundo exterior, a memória das coisas de Deus. Jesus substituiu Sócrates como o redentor e o unificador dos dois mundos. Para o criador da doutrina do pecado original, há uma Cidade de Deus paralela à Cidade dos Homens (como a realidade sensível e o mundo inteligível de Platão). Agostinho colocou a utopia platônica como um objetivo histórico da humanidade: ao ser expulso do Éden, o homem dissociou o universo, Cristo reabriu a passagem entre os mundos e o retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades.
E o sonho da Cidade Santa no Final dos Tempos deu um sentido à história e um destino para humanidade.
Vivemos em um universo dividido entre o que sentimos e o que pensamos, mas caminhamos para sua unificação escatológica. Para Agostinho, no entanto, o tempo só existe no presente e só é visível através da linguagem; o passado só existe na memória, o futuro só existe na imaginação. O ‘fim dos tempos’ é o fim dessa sensação de continuidade no espaço provocada pela morte; o apocalipse é a revelação da ordem arquetípica, a eternidade de onde nunca saímos inteiramente.
Vários outros sonhos menores se desdobram deste sonho magistral: o sonho do retorno do messias, o sonho da democracia de Rousseau e o sonho da conspiração em um mundo governado pelo mal. Há uma grande diferença entre um sonhador de sonhos vivos e um pensador idealista. O sonhador imagina novas idéias e crenças que se tornam sonhos vivos para futuras gerações; e o idealista é apenas analista irrealista, que geralmente segue idéias e crenças já formuladas.
Certo dia, pelo início do século XVII, René Descartes sonhou que o Universo era um gigantesco relógio e que Deus era um relojoeiro, recusando as explicações escolásticas de que eram as virtudes humanas que determinavam os acontecimentos e que as forças divinas atuavam diretamente sobre o destino humano.
E o sonho do universo-máquina nos tornou seres mecânicos e o cartesianismo se tornou senso comum.
Autores contemporâneos criticam o pensamento cartesiano em seu aspecto racionalista (o método da dúvida sistemática, a dissociação do tempo do espaço nos eixos cartesianos, a idéia de plano geométrico dissociado do espaço real), porém não conseguem superar o sonho de Descartes. Fritjoff Capra, por exemplo, gostaria de romper com o paradigma mecanicista de que o mundo é uma máquina e definir o universo como um sistema biológico complexo, mas ainda vive e pensa dentro de um universo-máquina.
O diretor Roberto Rosselini fez uma série de documentários para TV italiana sobre filósofos. O episódios sobre Descartes mostra que o filósofo não era um homem contemplativo, mas sim um soldado francês, um homem de ação extremamente inteligente e curioso, que se retirou de seu país em virtude dos atritos entre católicos e protestantes, indo residir na Holanda. Descartes era um homem religioso que gostava de matemática e lógica, e não aceitava as explicações da escolástica e do neoplatonismo para o mundo físico. Ele se entregava de coração às questões do Discurso de Método que investigava e se orientava através de seus sonhos. Em nenhum momento, ele quis negar a teologia cristã, mas sim completá-la de forma mais realista, com a dissociação entre corpo e alma.
Porém, depois de Descartes, todos passaram a seguir, mesmo involuntariamente, suas orientações para o espírito pensante, o sonho que torna a ciência possível.
E durante a modernidade (esta imagem objetiva e coisificada que fazemos de nós mesmos), fomos prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos da ciência objetiva, de bolinhas de carne girando em uma bola de pedra em torno de uma grande bola de fogo. Mas, Eu não sou uma bola de carne, a Terra não é uma bola de pedra e o Sol não é uma bola de fogo. Por outro lado, também não podemos retroceder ao passado, considerando os astros como são deuses e recolocando o observador como sujeito no centro do universo, como se fazia antes da ciência objetiva e da modernidade.
4. O sonho nagual
Homem, Mulher; Luz, Trevas; Vida, Morte - vivemos em um universo de polaridades opostas. Mas, interpretamos essas polaridades de diferentes formas. Algumas tradições mais antigas tratam as polaridades de opostos de uma forma ainda mais diferente e, aparentemente, incompreensível para o pensamento científico: o Paradoxo. O deus Abraxás de Creta antiga, Janus dos Romanos e o par Tonal/Nagual nas Américas são exemplos de deuses de "duas faces" paradoxais, isto é, de uma concepção em que a polaridade de opostos que dá origem a vida e ao universo que não comporta nenhuma forma de totalização ou unificação globalizante. Aliás, talvez algumas de nossas polaridades dialéticas e dialógicas (Vida/Morte, Bem/Mal, Ser/não-Ser) sejam também paradoxos que nos recusamos a aceitar.
Nas mitologias pré-colombianas, os deuses gêmeos também desempenham um papel central. Para os toltecas mais do que deuses, o tonal e o nagual são princípios cognitivos e realidades paralelas.
Três mil anos atrás havia um ser humano, que vivia perto de uma cidade cercada de montanhas. (...) Um dia, enquanto dormia numa caverna, sonhou que viu o próprio corpo dormindo. Saiu da caverna numa noite de lua nova. O céu estava claro e ele enxergou milhares de estrelas. (...) Olhou para suas mãos, sentiu seu corpo e escutou sua própria voz dizendo: “Sou feito de luz; sou feito de estrelas.” Olhou novamente para o alto e percebeu que não eram as estrelas que criavam a luz, mas sim a luz que criava as estrelas. “Tudo é feito de luz”, acrescentou ele, “e o espaço no meio não é vazio.” (...) Então, ele compreendeu que, embora fosse feito de estrelas, ele não era essas estrelas. “Sou o que existe entre elas”, pensou. Assim, chamou as estrelas de tonal e o espaço entre os dois nagual, e percebeu que a harmonia e o espaço entre os dois eram criados pela Vida ou Intento. (RUIZ; 2005, 13 e 14.)
Há sempre uma dupla realidade, uma simetria entre o lado de dentro e o de fora, o micro e o macrocosmo. No campo filosófico há, para Platão, um mundo sensível-concreto e outro inteligível-abstrato; uma cidade dos homens e uma cidade de Deus para Santo Agostinho; para Descartes, coisas extensas e objetos virtuais. Com Kant, há uma inversão de perspectiva: a realidade deixa de ser uma percepção e passa a ser uma interpretação. O mundo externo se torna uma projeção estruturada do sujeito, a simetria torna-se um reflexo invertido.
No campo religioso também há simetria, mas é o metafísico que se reflete no físico: “assim em cima, como embaixo” - expressão presente não apenas nas Tábuas de Esmeralda de Hermes Trimegisto, mas presente em todas as grandes tradições, como a chinesa (céu e a terra), a indiana (o universo-templo e o corpo-templo), e a ocidental (o homem como a imagem e semelhança de Deus). No humanismo iluminista, há cruzamento desses dois modos de representação simétricos, o filosófico e o tradicional, em que o homem ocupa o lugar central (como na tradição judaica cristã), mas o universo externo que enquadra e determina a experiência subjetiva (como crê a modernidade). Para Carlos Castaneda, a simetria entre a cognição ordinária e a extraordinária é um paradoxo insuperável para o qual não existe totalização ou unificação globalizante. O Mundo e a Consciência são termos irredutíveis.
Para as tradições, a simetria é dada como certa (o mundo material é um desdobramento denso dos universos sutis); para modernidade, a simetria é parcial e invertida (o subjetivo parcialmente reflete a realidade total); para Castaneda, não há simetria ontológica (nem reflexividade entre dimensões paralelas): os objetos é que são duplos construídos intersubjetivamente em um único plano imanente bifacetado - como a onda e a partícula.
Para o xamanismo, o sonhar é a base de toda experiência cognitiva: sonhamos o tempo todo todos juntos, seja dormindo ou quando estamos acordados (mesmo agora estamos sonhando: eu escrevendo e você lendo esse texto). A diferença é o enquadramento mental-sensorial no estado de vigília (ou tonal) da percepção da energia sem realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou nagual). Os conceitos de Tonal e Nagual representam campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.
Mas, há também diferentes interpretações dessa dualidade. Enquanto Ruiz sonha em salvar a terra e a humanidade, Castaneda intenta antes salvar-se do destino da humanidade de ser absorvido pela terra.
Para don Miguel Ruiz (2005), há dois sonhos coletivos: o sonho que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção, o sonho do inferno” – e o sonho dos guerreiros - “o nagual, o sonho da segunda atenção”. Para ele, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Vivemos em um sonho coletivo que nos aliena de nossas vidas e nos mantêm cativos em uma realidade virtual. Somos prisioneiros uma ‘Matrix’ formado por crenças e valores.
Há, assim, um sonho coletivo - ''sonho do inferno'' ou ''sonho do planeta'' – e nossos sonhos pessoais. Em nossa formação pela família, pela escola e pela sociedade, nossos sonhos pessoais são “domesticados através do medo”, pois nos tornamos escravos das expectativas alheias e de nossas próprias exigências. Medo não simplesmente de ser punido ou morto, mas principalmente de ser rejeitado, de não ser amado. Segundo Ruiz, é preciso retomar nossa capacidade de sonhar, libertando nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão; e também é necessário, em conjunto com outros sonhadores, compreender e transformar esse sonho social de destruição planetária, para que as futuras gerações possam viver em harmonia com a Terra e consigo mesmas.
Já para Carlos Castaneda, o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um verso inorgânico. A tarefa do xamã é sair individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual, deixando para trás a condição humana. Castaneda considera a existência de dois mundos paralelos (o mundo das coisas e o das relações entre energias); e o nagual é visto como o aspecto vibracional do universo, constituído de energia e de relações entre diferentes estados de ser.
5. Perguntas
O filme Matrix combina os sonhos da caverna, da utopia e o do universo mecânico, fantasiando sonhar uma saída para nosso mundo, mas fica apenas no plano da imaginação. O verdadeiro sonhar implica em criar um caminho antes inimaginável; em abrir novas perspectivas, e não simplesmente tecendo fantasias com mitos cristalizados pelas tradições.
Aliás, há várias histórias e contos sobre essa temática, do qual se destaca O sonho de mil gatos, de Neil Gaiman (Sandman #18), em que um gato sonha que sua espécie já dominou o planeta, porém, uma vez que os felinos deixaram de sonhar, sua espécie passou a ser dominada pelo sonho coletivo dos seres humanos. No dia em que mil gatos sonharem, no entanto, o sonho felino triunfará novamente e os homens voltarão a sua condição original.
Será que a generalização social dos sonhos lúcidos nos levará a um salto evolutivo quântico da consciência humana de grandes proporções? Será que, ‘quando mil homens sonharem com lucidez’, o sonho coletivo humano sobre o planeta se tornará consciente de si e de seu papel no universo?
revolução felina

O tédio reinava naquele prisão. Os dias passavam e os presos fumavam suas vidas, morrendo preguiçosamente. O egoísmo era uma questão de sobrevivência.
Foi então que, ninguém sabe dizer como nem porque, surgiu um gato.
Um gato e todos se encantaram ou 'engataram', oferecendo petiscos e carinhos, em um festival de afeto e estima. O desenvolvimento da empatia e do cuidado com um outro ser vivo tornaram os presos pessoas melhores, mais gentis e generosas.
Os humanos, com suas possessividades, logo se enciumaram e houve disputas pelo pertencimento do felino. E as disputas se tornaram brigas. Os que não gostavam do gato o acusaram como sendo a causa e o objeto do conflito.
A direção do prisão, então, decidiu adotar vários gatos para que todos os presos pudessem desfrutar dos benefícios de sua companhia. O comportamento de autonomia e independência, de grupo sem macho alfa nem bodes expiatórios, característico dos felinos acabava sendo adotado pelos presos.
O presídio tornou-se um paraíso felino para felicidade de uma parte dos presos, que se tornaram seus devotos. Acreditam se tratar de seres superiores, anjos, deuses e até alienígenas. Porém, havia também os que não gostavam dos gatos. Esses passaram a ser vistos como psicopatas, pessoas sem empatia. "Não gostam de gatos e os gatos não gostam deles porque não são boas pessoas". Por outro lado, os gatos também passaram a imitar o comportamento violento dos seus donos, tornando-se mais agressivos, disputando fêmeas, território e até mesmo a posse de seus 'donos'.
“Esses gatos são demônios na forma de bicho” - gritou o pastor. “Agentes da indisciplina e da rebeldia indolente” - acusava o carcereiro sádico, que não conseguia mais ser obedecido.
E vários dos que não gostavam daquela democracia felina e de sua liberdade emocional que ignoravam ordens verticais e hierarquia impostas, se sentiram autorizados a matar os bichinhos.
A chacina foi barulhenta e durou apenas uma noite. Houve brigas e mortes humanas. Depois da morte do último gato, o silêncio gritou de dor.
E o tédio retornou aquela prisão, com seus presos morrendo sozinhos, entregues às próprias dores.
domingo, 9 de novembro de 2025
domingo, 6 de julho de 2025
Watchmen
Lançado em 2009, o filme é uma adaptação cinematográfica da graphic novel, considerada uma das mais influentes obras dos quadrinhos, ganhadora de diversas premiações (4 Kirby Awards, 4 Eisner Awards e 7 Harvey Awards), do autor Alan Moore.
Se passando durante a Guerra Fria, a história se passa nos anos 1980, quando não se é mais permitido agir como um super-herói. A trama gira em torno de uma investigação por um vigilante mascarado denominado Rorschach, que está investigando a morte de um de seu antigo parceiro combatente do crime. Ao decorrer da trama, ele vai ao encontro de seus ex-parceiros vigilantes (Ozymandias, Dr Manhattan, Espectral e Coruja) para alertar sobre o assassinato, pois acredita-se que esse assassinato não é um caso isolado e sim uma conspiração para matar os demais vigilantes. Durante as investigações, Rorschach junto com os demais vigilantes descobrem que não se trata apenas de assassinatos de heróis, e sim, algo muito maior podendo alterar o destino do planeta terra.
O filme é dirigido por Zack Snyder, famoso pelo seu estilo sombrio, que mantém os impactos filosóficos, sociais, políticos e até espirituais na sociedade presente na história em quadrinhos. Além disso, faz questionar a moralidade por trás do conceito de “justiça”, apresenta personagens com profundos dilemas éticos e discute temas como poder absoluto, controle político e o valor da vida humana. Os personagens não os típicos Super-heróis, perfeitos, todos eles estão com conflitos internos, não se tratava apenas de seres super poderosos e sem problemas sempre lutando contra o mal, mas também de pessoas normais com questões e feridas em aberto.
O tom do filme é sombrio, uma estética escura e hiper detalhada, respeitando o visual da HQ, com cenas que parecem sair diretamente das páginas, como algumas “splash pages” - termo bastante utilizado por leitores para se referir a uma página inteira dedicada a uma única cena ou imagem impactante.
A obra divide opiniões dos fãs até hoje. Alguns elogiaram sua fidelidade estética e narrativa com a HQ, já outros acharam a adaptação fria, longa e excessivamente visual. Não se pode aguardar a todos, principalmente quando se trata de Zack Snyder - o que falar de “Batman vs Superman”, não é mesmo?
sábado, 5 de julho de 2025
Promethea #26
No derradeiro capítulo da saga, não assistimos a um cataclismo, mas a uma catarse. A humanidade não é destruída, é despertada. Moore nos obriga a pensar que o “apocalipse”, do grego apokálypsis, "revelação", talvez nunca tenha sido um fim literal, mas a súbita iluminação do que sempre esteve diante de nós: a ficção que chamamos de real.
A Promethea que guia a narrativa é mais do que personagem: é arquétipo. Ela é a ideia viva, a personificação do logos criativo, a manifestação de Sophia, a sabedoria. E nesta edição, ela desce à cidade (como quem desce à matéria) para revelar que a imaginação não é evasão, mas poder. Um poder tão vasto que pode, literalmente, reescrever o mundo.
Em diálogo com o hermetismo, a cabala, a tradição gnóstica e a metafísica da linguagem, Promethea #26 opera como um grimório moderno. Cada quadro é uma invocação, cada fala uma chave de abertura para um estado expandido de consciência. As ruas de Nova York se tornam um campo simbólico, onde figuras mitológicas e deuses pós-modernos disputam narrativas. A divindade não desce dos céus, ela emerge da linguagem, da arte, da imaginação humana.
O mais subversivo, porém, não está nas pirotecnias visuais ou nos diálogos sobre misticismo: está na ideia de que o mundo, como o conhecemos, termina quando compreendemos que o construímos com palavras. “O mundo vai acabar às 11h30 de quarta-feira. É melhor você ter algo para dizer.” É assim que se decreta o fim: como um convite à fala, à criação, à autoria do real.
Neste sentido, a HQ não é apenas literatura gráfica, é um ritual de iniciação. Um rito que nos apresenta à Promethea como musa e como método: sonhar como resistência, imaginar como revolução. E o mais radical dos atos criativos, parece dizer Moore, é perceber que você já é parte da ficção e que pode, a qualquer momento, reescrever a sua página.
O fim do mundo, portanto, não é uma ruína. É rito. É a consciência assumindo o comando da narrativa. E se há algo a ser aprendido com Promethea #26, é que imaginar não é escapar do mundo. É mergulhar nele com tanta lucidez que ele muda.
Revivendo Promethea
Promethea in Misty Magic Land
Diogo Bertolin
Onde será que a nossa imaginação pode nos levar ? Existe algum limite? Será que é possível acessar outro mundo? Ou quem sabe assumir outra personalidade?. Esses questionamentos passavam na cabeça de Sophie ou Promethea? Para se reencontrar, ela precisou de sua imaginação chegando através dela na ilha mística mágica.
A magia do pensamento fez com que Promethea se visse diante de sua infância sendo recebida pela chapeuzinho vermelho que a apresenta a floresta negra onde sua amiga supostamente estaria. E realmente ela lá estava, com o gorila chorão, mais um personagem que fazia parte da infância de Sophie, que trazia suas inseguranças e seus medos, que ela teve que superar para libertar sua amiga Stacia.
Parte de sua missão estava completa, agora precisava voltar ao mundo real, mais uma vez com a força da sua imaginação “apenas feche seu olho, e pense que está em Nova York” e assim, foi feito ambas estavam de volta a realidade dos EUA. Então, nos traz o seguinte pensamento: o quanto as histórias, os desenhos, a mídia infantil influencia na formação e no desenvolvimento do pensamento e das ideais no ser humano.
Portanto, Promethea nada mais é que o espírito infantil presente em cada um de nós, com as vivências, medos e referências de cada um nesse período da vida.
resenha de promethea
quinta-feira, 3 de julho de 2025
a luz
Operação Criatividade
QG Cerebral – Operação Criatividade
Por Josy Mayara
Localização: Córtex cerebral central, Estação de Processamento de Conhecimento.
Era mais uma segunda-feira agitada no QG cerebral de Júlia, estudante de Jornalismo. A missão do dia era desafiadora: Processo criativo, memorização e aprendizado para a apresentação de um trabalho sobre mídia e comportamento.
No comando, estavam os mesmos três heróis do cérebro reunidos numa mesa de emergência: Astro, o Astrócito, chefe de logística e suporte, Neuri, o Neurônio, encarregado das conexões e transmissões de ideias e Glia, a Célula Glial, responsável pela segurança, nutrição e controle geral da bagunça.
— Atenção, equipe! A Júlia bebeu café e agora tá com o cérebro a mil! Precisamos coordenar sinapses, energia e estabilidade emocional antes que ela comece a surtar com a quantidade de abas abertas no navegador! – Disse Astro, mostrando a sua hiperatividade.
— Tô recebendo um monte de informação aqui: Pierre Lévy, fandoms, cultura digital... Precisamos organizar essas memórias de curto prazo e fazer o backup no hipocampo! – Neuri falou com toda a calma e organização.
— Sem pânico! Já estou limpando os resíduos das sinapses anteriores e levando glicose fresquinha pros neurônios. Se os níveis de estresse subirem, eu lanço dopamina de emergência. – Disse Glia, sempre prestativa, ajudando os dois.
A luz do lobo frontal piscava freneticamente. Era sinal de que Laura estava tentando ser criativa. No córtex pré-frontal, Neuri começou a organizar ideias que surgiam:
— E se a gente comparar o comportamento dos fãs de música com movimentos sociais? Isso dá um gancho ótimo pra introdução! Alguém anota isso, rápido!
Astro se controlou e começou a digitar freneticamente num teclado invisível, gerando novas redes de apoio ao redor dos neurônios:
— Já estou fortalecendo as sinapses dessa ideia com proteínas de memória. Se ela dormir bem hoje, isso fixa!
— Se ela dormir bem... — Glia suspirou.
Lá fora, Júlia olhava fixamente para a tela do computador. Tinha acabado de ter uma ideia brilhante e nem sabia o quanto de esforço celular e cerebral isso envolvia. Sorriu, abriu o bloco de notas e começou a digitar.
Dentro do cérebro, o trio comemorava. No painel de controle apareceram as seguintes mensagens: Missão aprendizagem ativada com sucesso. Criatividade:fluindo. Memórias: em formação.
Glia estalou os dedos:
— Pronto, pessoal. Agora vamos só garantir que a motivação continue. Alguém libera um pouquinho de serotonina aí?
E assim, entre conexões elétricas, cuidados invisíveis e muito trabalho em equipe, o cérebro de Júlia seguia firme, construindo ideias, guardando conceitos e transformando conhecimento em criação. Porque no fim, mesmo por trás de uma mente criativa, sempre tem um exército invisível de pequenos heróis neurais trabalhando em silêncio para fazer tudo acontecer.
quinta-feira, 20 de março de 2025
metajogador
Vilém Flusser (1998) caracteriza o ‘modo de ser brasileiro’ como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos. Flusser vê o brasileiro de modo semelhante a Darcy Ribeiro descrevendo três estratégias de jogo colonial.
É possível engajar-se de várias maneiras nos jogos. Por exemplo: jogar para ganhar, arriscando derrota. Ou jogar para não perder, para diminuir o risco da derrota e a probabilidade da vitória. Ou jogar para mudar o jogo. Nas duas primeiras estratégias o engajado se integra no jogo, e este passa a ser o universo no qual existe. Na terceira estratégia o jogo não passa de elemento do universo, e o engajado está "acima do jogo". Se ciência for jogo, o técnico se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o cientista pela estratégia três (procura mudar o jogo, alterar suas regras e introduzir ou eliminar elementos). Se língua for jogo, o participante da conversação se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o poeta pela estratégia três (pelas razões indicadas). O mesmo pode ser assim formulado: quem aplica estratégia um ou dois esqueceu que está jogando (por exemplo: técnico, participante de conversação, industrial, político, general e líder estudantil esqueceram que estão empenhados em jogo). Quem aplica estratégia três sempre conserva distância suficiente para dar-se conta do aspecto lúdico da sua atividade (por exemplo: cientista teórico, poeta filósofo e futurólogo). (Flusser, 1998, 108).
A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo arriscando a derrota – como os norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos que jogam para não perder, buscando reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso – como a maioria dos povos latinos americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam para mudar o jogo, que caracteriza o ‘modo brasileiro’. A estratégia três corresponde a uma forma de resistência criativa à aculturação colonizadora, uma identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita a cultura do colonizador: a absorve e a recria com sua própria linguagem.
Não se trata mais de identidade de um povo ou estratégia de sobrevivência dos dominados, mas sim de um comportamento cultural resiliente a ser adotado por todos os povos em um futuro global. As alteridades, aproximações, estranhamentos e a maneira como os grupos interagem ao longo da história acabam criando relações de poder de acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro.
Flusser reconhece que, para os povos colonizados, afirmar sua identidade cultural é um ato de resistência muito doloroso porque implica em superar o não reconhecimento do outro (e de si mesmo projetado no colonizador), mas também compreende a antropofagia como um método de diálogo dentro de um contexto da interculturalidade, reconhecendo que cada um tem sua história e uma identidade própria a ser respeitada, cultivada e celebrada.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
contemplação
Na esquina da rua mais antiga, onde o tempo parecia mais denso, um homem vestido com um sobretudo escuro observava. Seus olhos estavam vazios, mas ao mesmo tempo brilhavam com um conhecimento que nenhum ser humano deveria carregar. Ele não era parte do cotidiano, mas estava, de alguma forma, ligado a ele, como uma nota oculta em uma melodia familiar. Ele sabia que algo se aproximava.
De repente, um som que não pertencia ao mundo, um toque de violino que vinha de lugar nenhum, rasgou a quietude da noite. Não era música, era uma mensagem — uma frequência. O homem respirou fundo, e as sombras ao seu redor começaram a se mover, como se estivessem respondendo ao chamado. O concreto sob seus pés se torceu, como se o mundo inteiro estivesse se preparando para algo que ainda não podíamos compreender.
E, então, o céu se abriu. Não da forma como os livros falam, mas como uma fenda. E dentro dela, havia cores que nunca vimos antes e palavras que nunca ouvimos. O homem sorriu, um sorriso triste, pois sabia que o momento havia chegado. O jogo que transcende o tempo estava prestes a começar.
"Será que você está pronto para ver o que não deveria ser visto?", ele perguntou para a noite, sua voz se misturando ao vento. Mas ninguém respondeu. E talvez, naquele momento, fosse melhor assim.












