terça-feira, 16 de abril de 2024

Democracia e Game

 


Democracia e risco

Para Rousseau, democracia não é para os homens. Somos violentos, passionais e mentirosos. A democracia é um governo para os deuses. A verdadeira relação da democracia com os jogos olímpicos não é que essa forma de governo se assemelhe ao jogo pela regra que se deve respeitar, mas porque ambos exigem dos participantes a superação de seus limites em um constante aperfeiçoamento, porque em ambos os homens aspiram a ser deuses.

Há uma grande semelhança entre a democracia e os jogos, em suas origens. Mas, exatamente em que? Ambos são processos de tomada decisões em comum? Regimes em que se mantem a unidade sem perder a diversidade? Há algo maior e mais interessante: tanto a democracia como os jogos exigem a superação individual e coletiva das dificuldades; ambos obrigam os homens a dar o melhor de si, domesticando o ruído através da consciência. A democracia e os jogos devem nos levar a ser o melhor possível.

Jurgen Habermas (1984, 2012a, 2012b) nos traz três temas conexos: a ampliação da esfera pública pela sociedade civil; a “ação comunicativa” diferenciada da “ação instrumental” e da “ação estratégica”; e a “democracia deliberativa”. Habermas entende que a racionalidade instrumental é a lógica objetiva das coisas, a ação determinada pela infraestrutura econômica; a racionalidade estratégica dos sujeitos individuais e coletivos corresponde a ação política e seus condicionamentos superestruturais; e a ação comunicacional é a esfera da intersubjetividade coletiva e da interação inconsciente, que está sujeita simultaneamente às racionalidades instrumental e estratégica.

A noção de democracia deliberativa é a união da ação comunicativa com a racionalidade estratégica contra a razão instrumental, ou a ampliação da esfera pública pela sociedade civil contra o mercado.

Nos anos 90, a ideia de democracia deliberativa - estruturada em um tripé entre o Estado (o campo da igualdade jurídica), o Mercado (o campo desigualdade econômica) e a Sociedade Civil (o campo das comunidades) - será retomada por Anthony Giddens e John B. Thompson. Porém, ao invés de pensar ação socialmente estruturada por uma sociedade fixa e permanente (como faz Habermas), os autores contemporâneos pensam em práticas sociais que se produzem e reproduzem de forma complexa.

Giddens e Thompson, por exemplo, não acreditam que na secularização absoluta das tradições e sim que a modernidade convivem com o poder simbólico de modo diferente.

Para Giddens, a vida social tradicional é voltada para o passado, para repetição de ciclos históricos; e a modernidade inicia uma nova concepção de tempo-espaço em que a reflexividade é voltada para o presente e para o futuro. A modernidade gera ‘bolhas’ tradicionais, mas no geral, produz incerteza pela pluralidade de opções que oferece. Essa falta de certeza e de segurança, aumenta ainda mais a reflexibilidade tanto da simulação de situações de risco como da invenção de ‘novas tradições’ através das mídias.

A democracia, assim vista, não é um mito do discurso político, ela é 'a' utopia (o projeto de uma sociedade perfeita sempre inacabada) por excelência. Os mitos estão sempre ancorados no passado imemorial, na tradição, na origem anterior à história; a utopia, ao contrário, está projetada no futuro, em um tempo que ainda não chegou no 'fim da história'. E, no presente, na reflexibilidade moderna, a democracia real é sempre imperfeita e imprevisível, arriscada e manipulada pelo poder simbólico.

Thompson aponta que os meios de comunicação passaram a mediar a percepção entre tempo e espaço, estabelecendo uma centralidade em relação as outras instituições. A mídia na modernidade sequestrou o 'lugar da fala' da autoridade pública e religiosa. Na pré-modernidade, a informação era distribuída unicamente a partir dos estados e das igrejas. Ao se estabelecerem instituições de mediação com autonomia relativa, o 'monopólio da fala' foi terceirizado. Assim, a mídia é, ao mesmo tempo, um campo para o diálogo entre os atores políticos e o público; e também mais um ator político invisível com interesses próprios em um contexto social mais amplo, que seleciona, hierarquiza e dá visibilidade aos acontecimentos históricos. Os meios de comunicação, assim, desempenham um duplo papel: por um lado, organizam as identidades simbólicas através de narrativas neo tradicionais; e, por outro, constroem de modo parcial e simplificado a realidade social que contextualiza a vida dos atores visíveis.

Giddens vê a democracia não apenas como uma forma de governo, mas também como um método de relacionamento entre pais e filhos, entre grupos de amigos, entre marido e mulher (GIDDENS, 2003: p.61). A democracia não consiste simplesmente na regra de maioria (pois assim seria impossível existir democracia entre duas pessoas com interesses diferentes, como professor e aluno, por exemplo) ou o direito ao dissenso, mas sim na negociação dos interesses divergentes e das próprias regras de negociação. A democracia vista desse modo não é o predomínio formal da maioria, mas a tomada de decisões através das regras negociadas entre os diferentes pontos de vista que formam uma unidade de ação.

A democracia implica ainda em levar em considerações os sentimentos, os próprios e os dos outros. E isto é bastante arriscado! Os casamentos eram arranjados entre famílias, hoje cabe a cada um, com base nos sentimentos, decidir com que vai se casar. A família se destradicionalizou, mas também se democratizou emocionalmente. Daí a noção de ‘democracia emocional’, que leva em conta bem estar de si e do outro. O risco produz comportamentos individualistas. A única saída para democracia é se democratizar ainda mais, fazendo com que todos sejam autônomos e responsáveis através de políticas públicas contra a dependência, seja química, familiar, emocional, econômica ou cultural. Porém, quanto mais as pessoas conquistam autonomia individual; menos eles querem participar das decisões coletivas – eis o paradoxo da democracia.

O paradoxo da democracia de Giddens é semelhante ao equilibrio de Nash. Modelo matemático em que apesar dos participantes não cooperarem, é possível que a busca individual da melhor solução conduza o jogo a um resultado estável, não havendo incentivo para mudanças. Ou seja: o governo dos piores, perpetuado pela corrupção e pela omissão dos melhores e da maioria.

A vida não é um jogo entre máquinas calculadoras programadas com objetivos variados. Somos tão irracionais que essa metáfora não nos cai bem. Além disso, nem todas disputas são amistosas. Em um jogo, o objetivo é vencer o adversário. Em uma luta, o objetivo é derrotar e até destruir o inimigo. O jogo é uma 'atividade competitiva' dentro de uma 'prática social cooperativa'.

A vida não é um jogo. Os jogos é que são simulações da vida. A grande diferença entre a vida e o jogo são seus riscos. Na vida, há o risco de morre e de perdas irreversíveis. No jogo, o perigo é não ser amado, perder a confiança em si, as posses, a naturalização da inferioridade, a honra.

A vida não é um jogo, mas está se tornando um. E como será, dependerá de nossa própria capacidade de jogar.

Traçou-se aqui um esboço de uma teoria geral dos jogos, abordando o lúdico como fator simbólico. Essa perspectiva mais geral - ancorada em Kamper, Baitello, Morin e Bystrina – releva a íntima relação dos jogos com o universo simbólico. Relação íntima que Wiener subdividiu em duas, levando em conta a natureza do ruído (o acaso, a incerteza, o risco), se é resultado da inconsciência dos jogadores ou se é proposital e deliberado em função da disputa do próprio jogo. Detalharam-se também as diferentes versões da teoria matemática dos jogos. Em seguida, a sociologia de Bourdieu foi apresentada como uma teoria capaz de contextualizar as teorias dos jogos. Neste cruzamento teórico, reelaborou-se o modelo de convergência entre os campos da política e da mídia e sugeriu-se também a possível aplicação das diferentes versões das teorias matemáticas dos jogos ao modelo dos três campos, colocando a mídia na posição de 'meta jogadora' ou de 'banca' para explicar o caráter central que os meios de comunicação desempenham na sociedade contemporânea.

Trata-se de observar, no modelo da teoria dos jogos, as três constantes em relação à ação política (o dinheiro, a ideologia e a imagem). Sendo que essa última é a mais complexa porque envolve sentimentos de proximidade, confiança, falsa intimidade e sobretudo porque aumenta o grau de imprevisibilidade do jogo, seja em eleições (o voto midiático é indeciso até a última hora), seja na vida política cotidiana (em que as decisões são tomadas em virtude do regime de visibilidade). 

A política se midiatizou, passando a se organizar pela gramática dos meios de comunicação (com ênfase na novidade, no inusitado e em padrões estéticos), produzindo uma cultura centrada no consumo de imagens, gerando novas competências, como marketing (que adapta a política às preferências do público através de pesquisas) e semelhança aparente entre a opinião pública e o mercado consumidor.

O resultado? O crescente desinteresse do público mais informado; o caráter artificial da opinião pública; a perda de autenticidade dos agentes e das instituições de representação política; a substituição parcial dos partidos e das instituições políticas representativas pelos meios de comunicação no debate e na defesa dos interesses da população. E, principalmente, o aumento exponencial do risco (de colapso do sistema político da democracia parlamentar) e a ‘gamificação’ da política, em que os atores disputam as apostas do público.

A noção de 'sociedade de risco' (BECK; LASH; GIDENS, 1997) estabelece que nossa cultura promove o máximo de autonomia dos indivíduos. Desafiamos a morte para nos tornarmos pessoas melhores, com corpos mais capacitados e mentes mais disciplinadas.

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