Democracia e risco
Para Rousseau, democracia
não é para os homens. Somos violentos, passionais e mentirosos. A democracia é
um governo para os deuses. A verdadeira relação da democracia com os jogos olímpicos
não é que essa forma de governo se assemelhe ao jogo pela regra que se deve
respeitar, mas porque ambos exigem dos participantes a superação de seus
limites em um constante aperfeiçoamento, porque em ambos os homens aspiram a
ser deuses.
Há uma grande semelhança entre a democracia e os jogos, em suas origens.
Mas, exatamente em que? Ambos são processos de tomada decisões em comum?
Regimes em que se mantem a unidade sem perder a diversidade? Há algo maior e
mais interessante: tanto a democracia como os jogos exigem a superação
individual e coletiva das dificuldades; ambos obrigam os homens a dar o melhor
de si, domesticando o ruído através da consciência. A democracia e os jogos
devem nos levar a ser o melhor possível.
Jurgen Habermas (1984, 2012a,
2012b)
nos traz três temas conexos: a ampliação da esfera pública pela sociedade
civil; a “ação comunicativa” diferenciada da “ação instrumental” e da “ação
estratégica”; e a “democracia deliberativa”. Habermas entende que a racionalidade instrumental é a lógica
objetiva das coisas, a ação determinada pela infraestrutura econômica; a
racionalidade estratégica dos sujeitos individuais e coletivos corresponde a
ação política e seus condicionamentos superestruturais; e a ação comunicacional
é a esfera da intersubjetividade coletiva e da interação inconsciente, que está
sujeita simultaneamente às racionalidades instrumental e estratégica.
A
noção de democracia deliberativa é a união da ação comunicativa com a
racionalidade estratégica contra a razão instrumental, ou a ampliação da esfera
pública pela sociedade civil contra o mercado.
Nos
anos 90, a ideia de democracia deliberativa - estruturada em um tripé entre o
Estado (o campo da igualdade jurídica), o Mercado (o campo desigualdade
econômica) e a Sociedade Civil (o campo das comunidades) - será retomada por
Anthony Giddens e John B. Thompson. Porém, ao invés de pensar ação socialmente
estruturada por uma sociedade fixa e permanente (como faz Habermas), os autores
contemporâneos pensam em práticas sociais que se produzem e reproduzem de forma
complexa.
Giddens
e Thompson, por exemplo, não acreditam que na secularização absoluta das
tradições e sim que a modernidade convivem com o poder simbólico de modo
diferente.
Para
Giddens, a vida social tradicional é voltada para o passado, para repetição de
ciclos históricos; e a modernidade inicia uma nova concepção de tempo-espaço em
que a reflexividade é voltada para o presente e para o futuro. A modernidade
gera ‘bolhas’ tradicionais, mas no geral, produz incerteza pela pluralidade de
opções que oferece. Essa falta de certeza e de segurança, aumenta ainda mais a
reflexibilidade tanto da simulação de situações de risco como da invenção de
‘novas tradições’ através das mídias.
A
democracia, assim vista, não é um mito do discurso político, ela é 'a' utopia
(o projeto de uma sociedade perfeita sempre inacabada) por excelência. Os mitos
estão sempre ancorados no passado imemorial, na tradição, na origem anterior à
história; a utopia, ao contrário, está projetada no futuro, em um tempo que
ainda não chegou no 'fim da história'. E, no presente, na reflexibilidade
moderna, a democracia real é sempre imperfeita e imprevisível, arriscada e
manipulada pelo poder simbólico.
Thompson
aponta que os meios de comunicação passaram a mediar a percepção entre tempo e
espaço, estabelecendo uma centralidade em relação as outras instituições. A
mídia na modernidade sequestrou o 'lugar da fala' da autoridade pública e
religiosa. Na pré-modernidade, a informação era distribuída unicamente a partir
dos estados e das igrejas. Ao se estabelecerem instituições de mediação com
autonomia relativa, o 'monopólio da fala' foi terceirizado. Assim, a mídia é,
ao mesmo tempo, um campo para o diálogo entre os atores políticos e o público;
e também mais um ator político invisível com interesses próprios em um contexto
social mais amplo, que seleciona, hierarquiza e dá visibilidade aos
acontecimentos históricos. Os meios de comunicação, assim, desempenham um duplo
papel: por um lado, organizam as identidades simbólicas através de narrativas
neo tradicionais; e, por outro, constroem de modo parcial e simplificado a
realidade social que contextualiza a vida dos atores visíveis.
Giddens
vê a democracia não apenas como uma forma de governo, mas também como um método
de relacionamento entre pais e filhos, entre grupos de amigos, entre marido e
mulher (GIDDENS, 2003: p.61). A democracia não consiste simplesmente na regra
de maioria (pois assim seria impossível existir democracia entre duas pessoas
com interesses diferentes, como professor e aluno, por exemplo) ou o direito ao
dissenso, mas sim na negociação dos interesses divergentes e das próprias
regras de negociação. A democracia vista desse modo não é o predomínio formal
da maioria, mas a tomada de decisões através das regras negociadas entre os
diferentes pontos de vista que formam uma unidade de ação.
A
democracia implica ainda em levar em considerações os sentimentos, os próprios
e os dos outros. E isto é bastante arriscado! Os casamentos eram arranjados
entre famílias, hoje cabe a cada um, com base nos sentimentos, decidir com que
vai se casar. A família se destradicionalizou, mas também se democratizou
emocionalmente. Daí a noção de ‘democracia emocional’, que leva em conta bem
estar de si e do outro. O risco produz comportamentos individualistas. A única
saída para democracia é se democratizar ainda mais, fazendo com que todos sejam
autônomos e responsáveis através de políticas públicas contra a dependência,
seja química, familiar, emocional, econômica ou cultural. Porém, quanto mais as
pessoas conquistam autonomia individual; menos eles querem participar das
decisões coletivas – eis o paradoxo da democracia.
O paradoxo da democracia de Giddens é semelhante ao equilibrio de Nash. Modelo matemático em que apesar dos participantes não cooperarem, é possível que a busca individual da melhor solução conduza o jogo a um resultado estável, não havendo incentivo para mudanças. Ou seja: o governo dos piores, perpetuado pela corrupção e pela omissão dos melhores e da maioria.
A vida não é um jogo entre máquinas
calculadoras programadas com objetivos variados. Somos tão irracionais que essa
metáfora não nos cai bem. Além disso, nem todas disputas são amistosas. Em um
jogo, o objetivo é vencer o adversário. Em uma luta, o objetivo é derrotar e
até destruir o inimigo. O jogo é uma 'atividade competitiva' dentro de uma
'prática social cooperativa'.
A vida não é um jogo. Os jogos é que são
simulações da vida. A grande diferença entre a vida e o jogo são seus riscos. Na
vida, há o risco de morre e de perdas irreversíveis. No jogo, o perigo é não
ser amado, perder a confiança em si, as posses, a naturalização da
inferioridade, a honra.
A vida não
é um jogo, mas está se tornando um. E como será, dependerá de nossa própria
capacidade de jogar.
Traçou-se
aqui um esboço de uma teoria geral dos jogos, abordando o lúdico como fator
simbólico. Essa perspectiva mais geral - ancorada em Kamper, Baitello, Morin e
Bystrina – releva a íntima relação dos jogos com o universo simbólico. Relação
íntima que Wiener subdividiu em duas, levando em conta a natureza do ruído (o
acaso, a incerteza, o risco), se é resultado da inconsciência dos jogadores ou
se é proposital e deliberado em função da disputa do próprio jogo.
Detalharam-se também as diferentes versões da teoria matemática dos jogos. Em
seguida, a sociologia de Bourdieu foi apresentada como uma teoria capaz de
contextualizar as teorias dos jogos. Neste cruzamento teórico, reelaborou-se o
modelo de convergência entre os campos da política e da mídia e sugeriu-se
também a possível aplicação das diferentes versões das teorias matemáticas dos
jogos ao modelo dos três campos, colocando a mídia na posição de 'meta
jogadora' ou de 'banca' para explicar o caráter central que os meios de comunicação
desempenham na sociedade contemporânea.
Trata-se
de observar, no modelo da teoria dos jogos, as três constantes em relação à
ação política (o dinheiro, a ideologia e a imagem). Sendo que essa última é a
mais complexa porque envolve sentimentos de proximidade, confiança, falsa
intimidade e sobretudo porque aumenta o grau de imprevisibilidade do jogo, seja
em eleições (o voto midiático é indeciso até a última hora), seja na vida
política cotidiana (em que as decisões são tomadas em virtude do regime de
visibilidade).
A
política se midiatizou, passando a se organizar pela gramática dos meios de
comunicação (com ênfase na novidade, no inusitado e em padrões estéticos),
produzindo uma cultura centrada no consumo de imagens, gerando novas
competências, como marketing (que adapta a política às preferências do público
através de pesquisas) e semelhança aparente entre a opinião pública e o mercado
consumidor.
O
resultado? O crescente desinteresse do público mais informado; o caráter
artificial da opinião pública; a perda de autenticidade dos agentes e das
instituições de representação política; a substituição parcial dos partidos e
das instituições políticas representativas pelos meios de comunicação no debate
e na defesa dos interesses da população. E, principalmente, o aumento
exponencial do risco (de colapso do sistema político da democracia parlamentar)
e a ‘gamificação’ da política, em que os atores disputam as apostas do público.
A noção de 'sociedade de risco' (BECK;
LASH; GIDENS, 1997) estabelece que nossa cultura promove o máximo de
autonomia dos indivíduos. Desafiamos a morte para nos tornarmos pessoas
melhores, com corpos mais capacitados e mentes mais disciplinadas.
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