O lúdico como discurso e 'modo de ser'
O professor André Lemos, a partir de sua
teoria Ator-Rede com Latour, descreve o lúdico como um modo de existência
moderno.
"A modernidade caracteriza-se por uma forma específica
de enquadramento da atividade lúdica, seja para infantilizá-la, seja para
ajustá-la como um negócio (do entretenimento). Acredito que a dimensão lúdica
seja uma das chaves para empreender uma antropologia dos modernos, já que o que
chamarei aqui de “seres do jogo” nos constituem, nos provocam, “jogam” com a
nossa subjetividade e com o nosso corpo por intermédio de artefatos
(“brinquedos fetiches”), narrativas e regras específicas."
Lemos apresenta os modos de existência,
propõe mais um modo (lúdico), apontando para a existência de “seres do jogo”, e
estabelece correlações deste com outros modos, como o da técnica, o da
metamorfose e o da ficção. Essa forma ontológico de pensar tem suas vantagens e
suas desvantagens. Mas, se pensando de forma mais epistemológica e
arqueológica, visualiza-se melhor que o lúdico é anterior aos outros modos de
ser e que passou por transformações históricas em virtude de sua relação com a
tecnologia e com a narrativa.
Isso em dois sentidos distintos e
complementares. O lúdico é anterior ao Outro – para Orlandi (análise
discursiva) e para Winnicott (psicologia infantil); e o lúdico como contexto
histórico é anterior à escrita e à história – como defende Flusser entre
outros.
Orlandi (1980) sugere um modelo
tipológico dos discursos segundo a participação dos interlocutores na produção
do Sentido.
·
Discurso
autoritário - O emissor impõe as suas
necessidades de transmissão à realidade-referente da linguagem. O discurso
tende à ‘paráfrase’, ou seja, à repetição da identidade do sentido e da ordem
subjacente à sua transmissão. O resto é ‘ruído’.
·
Discurso lúdico - O receptor (ou a percepção) se apropria da
realidade-referente, submetendo a transmissão a fatores aleatórios e/ou às
necessidades de desenvolvimento da linguagem. O discurso aqui tende à
polissemia e à multiplicidade do sentido.
·
Discurso
Polêmico - O sentido é construído pela
reversibilidade dialógica entre os polos interlocutores da linguagem. O
discurso, neste caso, é uma ‘tensão’ entre a paráfrase e a polissemia, entre a
identidade e a multiplicidade do sentido.
Toda imposição de realidade referencial e
toda linguagem instituída pelo emissor é discurso autoritário, em oposição à
semiose absoluta do receptor, os sonhos e o simbólico, o discurso lúdico. Isso
aponta para uma discrepância estrutural entre o método científico e o objeto
lúdico, uma inadequação entre brincar e estudar.
No brincar, o lúdico é anterior ao outro.
Benjamin, Winnicott e outros falam da relação entre eu e brinquedo como uma
preparação para o outro. Muitos pensadores de ensino tradicional consideram que
o começo do aprendizado começa o letramento e as quatro operações, que a
socialização da escola estabelece o final da zona de conforto infantil. O
aprendizado torna-se sério e sem graça porque exige concentração contínua e
disciplina corporal. Jogar é uma prática mista entre brincar e aprender. E 'jogar a dois' (ou mais) é simular
uma situação hipotética através de disputa simbólica. A socialização e a
criatividade são estimuladas ao máximo pela dinâmica cooperação/competição. O
que nos leva a pensar que o verdadeiro objetivo de jogar é desenvolver a
criatividade.
Na
perspectiva de Flusser, a pós-história ou pós-escrita está, através dos meios
de comunicação, resgatando a ludicidade dos jogos anteriores à escrita e
produziando a 'gamificação das relações sociais e das interações'. A
gamificação acontece dentro das instituições quando o modelo do jogos passa a
organizar outras práticas sociais. Flusser condena a gamificação, o
divertimento e o entreterimento como formas de domesticação do lúdico.
No
entanto, a gamificação do aprendizado faz parte de transformarmos nossas vidas
em aventuras de risco. O aprendizado das relações dentre o eu e o outro está se
configurando como uma Jornada existencial. Para alguns a jornada do herói; para
outros, da heroína. 'Aprendizado' é a prática e produto de aquisição e
assimilação de ganhos simbólicos nas relações entre Eu e Outro. Por 'simbólico'
entendo não apenas o conhecimento mas também a sabedoria; não apenas a
informação mas também a incorporação de habilidades e o desenvolvimento de
competências. 'Simbólico' também representa visibilidade, status, prestígio. O
que, de modo secundário, também se aplica a ideia de aprender, como resultado
de nossas interações. O aprendizado simbólico é a aquisição de repertório e da
prática de performance. O jogo ensina a saber perder e a saber ganhar, a saber
se colocar no lugar do outro, seja do ponto de vista interpessoal ou do
intercultural, o jogo ensina a capacidade de adaptação e de diálogo.
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