Primeira aula:
terça-feira, 16 de abril de 2024
Curso de técnicas de criatividade
a vida é um jogo?
Uma pergunta simples: a vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores e perdedores? Acredito que não. Mesmo se pensarmos em competição de genes e em 'seleção natural', o critério evolucionista de Darwin da sobrevivência do 'mais forte' já foi substituído pelo critério da capacidade de adaptação e resiliência (Lamarck). A vida seleciona os mais flexíveis e resistentes.
Mas, também compreendo que a vida vem se
tornando uma competição. A vida moderna é uma aventura. Somos todos heróis a
procura do grande amor e da realização no mundo. Por isso, tornamos nossas
vidas narrativas de risco. Risco de vida, risco de não sermos amados, de não
sermos bem sucedidos. Risco do fracasso dos perdedores. A vida está se tornando
um jogo. Nesse contexto, estamos vivendo um processo de 'gamificação' das
relações sociais e das interações: a aplicação das estratégias e do design competitivo
dos jogos em outras práticas sociais, com o objetivo de aumentar o engajamento
dos participantes.
A gamificação das relações sociais se dá a
nível estrutural, como disputas entre instituições sociais; como se a sociedade
se tornasse um imenso mercado. Já a gamificação das interações se dá no micro
espaço do cotidiano, acirrando a competição entre as pessoas em torno
diferentes objetos de disputa, como “se a vida fosse um jogo”.
Atualmente, o aprendizado está se
'gamificando', tornando-se lúdico e competitivo. As antigas disciplinas estão
se tornando 'narrativas seriadas ', em que cada aula é um episódio
(representando um conteúdo específico) e um capítulo de um arco narrativo maior
(correspondendo a um estágio de um conjunto de conteúdos cumulativos). As
avaliações são desafios para que o aluno assimile o conteúdo específico e
avance em relação ao conjunto de conhecimentos sequenciais.
A gamificação representa a inserção do
risco controlado – a incerteza lúdica - no aprendizado e na própria vida. Para
tanto, não é preciso muita tecnologia. Basta viver feliz e consciente das
próprias limitações, mas sempre buscando por desafios para transcendê-las.
O conceito teve grande repercussão na
área de comunicação: o livro Gamificação em Debate (SANTAELLA, 2018)
traz um coletânea importante de autores de diferentes áreas, demonstrando que a
atividade lúdica aplicada a outras atividades não promove apenas engajamento
motivacional, mas, sobretudo, em mudanças profundas de comportamento. Para
esses autores, a gamificação retoma os aspectos lúdico e criativo que todos têm
incubado, ampliando a qualidade cognitiva do aprendizado e do desempenho.
Por outro lado, existem também os
contrários à gamificação, que vêem o processo de modo colonizador e exclusor da
maioria, uma vez que apenas as elites têm acesso aos jogos eletrônicos, à
robótica e a um ensino mais individualizado. A gamificação, assim, aumentaria
muito mais a desigualdade social e a exclusão cultural. Os jogos nos tornam
mais competitivos e menos solidários, reforçando assim, do ponto de vista
pessoal, os imperativos da sociedade global capitalista.
Há também o trabalho do professor Marcos
Nicolau (2018a, 2018b, 2018c, 2018d, 2019, 2021) da UFPB sobre ludosofia -
conceito que desloca o foco da gamificação de um artificio de engajamento
motivacional para o aprendizado existencial dos jogos em si.
Por que jogar?
Jogar ensina a viver, a perder, a ganhar,
a lidar com as emoções, a ser ético - independentemente do conteúdo que está
sendo ensinado de forma colateral. Os
jogos, além da memorização e visualização do conhecimento em diferentes áreas
(história, geografia, biologia, matemática, etc), também desenvolvem o
amadurecimento emocional, a aceitação das perdas, a empatia com os outros.
Agora nossa questão aqui é - levando em conta os
prós, os contras e os dialéticos - pensar da perspectiva pedagógica, como
formar protagonistas, desenvolvendo competências e habilidades sócio emocionais
através de jogos?
E, do ponto de vista social: os jogos podem, ao
contrário do que se pensa, contribuir para construção de sua sociedade mais
solidária e menos competitiva? A democracia é um jogo?
E ainda, em uma perspectiva pessoal: Como
transformar a própria vida em uma aventura criativa? Como inserir a 'incerteza
lúdica' em nossas vidas de modo decolonial e criativo?
NICOLAU, Marcos. Dezcaminhos
para a criatividade. 2. ed. João Pessoa: Ideia, 2018a.
https://drive.google.com/file/d/132ZVUcLz5vXNZXe9yoB7Do-rpUVChbU5/view
____ Introdução à
criatividade. 2. ed. João Pessoa: Ideia, 2018b.
https://drive.google.com/file/d/15bErzpm3ZEgPJ9rag3gSqZyjVGXaufHe/view
____ Ludosofia: a
sabedoria dos jogos, 2ª ed. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2018bc.
https://drive.google.com/file/d/1zjiOORuX2xYXeZydvOREKqRO1YicJWUJ/view
____ Razão e
criatividade: tópicos para uma pedagogia neurocientífica. 3. ed. João
Pessoa: Ideia, 2018d.
https://drive.google.com/file/d/1Eg2UCSTMMipyp54ooOCxhQ1U4FCHZKOA/view
____ Games e
gamificação: práticas educacionais e perspectivas teóricas. João Pessoa:
Ideia, 2019.
https://drive.google.com/file/d/1Zenw8rDY-aSfeymKaj61FjJR44_dpDBG/view
____ Ludoaprendizagem
desplugada: pensamento computacional com jogos de tabuleiro no ensino
fundamental. João Pessoa: Ideia, 2021.
https://drive.google.com/file/d/12YJMuK17waFVHJ7t16qUW8jxiTeAd-N4/view?usp=sharing
um modo de ser
O lúdico como discurso e 'modo de ser'
O professor André Lemos, a partir de sua
teoria Ator-Rede com Latour, descreve o lúdico como um modo de existência
moderno.
"A modernidade caracteriza-se por uma forma específica
de enquadramento da atividade lúdica, seja para infantilizá-la, seja para
ajustá-la como um negócio (do entretenimento). Acredito que a dimensão lúdica
seja uma das chaves para empreender uma antropologia dos modernos, já que o que
chamarei aqui de “seres do jogo” nos constituem, nos provocam, “jogam” com a
nossa subjetividade e com o nosso corpo por intermédio de artefatos
(“brinquedos fetiches”), narrativas e regras específicas."
Lemos apresenta os modos de existência,
propõe mais um modo (lúdico), apontando para a existência de “seres do jogo”, e
estabelece correlações deste com outros modos, como o da técnica, o da
metamorfose e o da ficção. Essa forma ontológico de pensar tem suas vantagens e
suas desvantagens. Mas, se pensando de forma mais epistemológica e
arqueológica, visualiza-se melhor que o lúdico é anterior aos outros modos de
ser e que passou por transformações históricas em virtude de sua relação com a
tecnologia e com a narrativa.
Isso em dois sentidos distintos e
complementares. O lúdico é anterior ao Outro – para Orlandi (análise
discursiva) e para Winnicott (psicologia infantil); e o lúdico como contexto
histórico é anterior à escrita e à história – como defende Flusser entre
outros.
Orlandi (1980) sugere um modelo
tipológico dos discursos segundo a participação dos interlocutores na produção
do Sentido.
·
Discurso
autoritário - O emissor impõe as suas
necessidades de transmissão à realidade-referente da linguagem. O discurso
tende à ‘paráfrase’, ou seja, à repetição da identidade do sentido e da ordem
subjacente à sua transmissão. O resto é ‘ruído’.
·
Discurso lúdico - O receptor (ou a percepção) se apropria da
realidade-referente, submetendo a transmissão a fatores aleatórios e/ou às
necessidades de desenvolvimento da linguagem. O discurso aqui tende à
polissemia e à multiplicidade do sentido.
·
Discurso
Polêmico - O sentido é construído pela
reversibilidade dialógica entre os polos interlocutores da linguagem. O
discurso, neste caso, é uma ‘tensão’ entre a paráfrase e a polissemia, entre a
identidade e a multiplicidade do sentido.
Toda imposição de realidade referencial e
toda linguagem instituída pelo emissor é discurso autoritário, em oposição à
semiose absoluta do receptor, os sonhos e o simbólico, o discurso lúdico. Isso
aponta para uma discrepância estrutural entre o método científico e o objeto
lúdico, uma inadequação entre brincar e estudar.
No brincar, o lúdico é anterior ao outro.
Benjamin, Winnicott e outros falam da relação entre eu e brinquedo como uma
preparação para o outro. Muitos pensadores de ensino tradicional consideram que
o começo do aprendizado começa o letramento e as quatro operações, que a
socialização da escola estabelece o final da zona de conforto infantil. O
aprendizado torna-se sério e sem graça porque exige concentração contínua e
disciplina corporal. Jogar é uma prática mista entre brincar e aprender. E 'jogar a dois' (ou mais) é simular
uma situação hipotética através de disputa simbólica. A socialização e a
criatividade são estimuladas ao máximo pela dinâmica cooperação/competição. O
que nos leva a pensar que o verdadeiro objetivo de jogar é desenvolver a
criatividade.
Na
perspectiva de Flusser, a pós-história ou pós-escrita está, através dos meios
de comunicação, resgatando a ludicidade dos jogos anteriores à escrita e
produziando a 'gamificação das relações sociais e das interações'. A
gamificação acontece dentro das instituições quando o modelo do jogos passa a
organizar outras práticas sociais. Flusser condena a gamificação, o
divertimento e o entreterimento como formas de domesticação do lúdico.
No
entanto, a gamificação do aprendizado faz parte de transformarmos nossas vidas
em aventuras de risco. O aprendizado das relações dentre o eu e o outro está se
configurando como uma Jornada existencial. Para alguns a jornada do herói; para
outros, da heroína. 'Aprendizado' é a prática e produto de aquisição e
assimilação de ganhos simbólicos nas relações entre Eu e Outro. Por 'simbólico'
entendo não apenas o conhecimento mas também a sabedoria; não apenas a
informação mas também a incorporação de habilidades e o desenvolvimento de
competências. 'Simbólico' também representa visibilidade, status, prestígio. O
que, de modo secundário, também se aplica a ideia de aprender, como resultado
de nossas interações. O aprendizado simbólico é a aquisição de repertório e da
prática de performance. O jogo ensina a saber perder e a saber ganhar, a saber
se colocar no lugar do outro, seja do ponto de vista interpessoal ou do
intercultural, o jogo ensina a capacidade de adaptação e de diálogo.
O lúdico como simbólico
Dietmar Kamper (1998)
estudando o jogo como metáfora da vida, chama a atenção sobre a discrepância
estrutural entre "o método e o objeto" desta pesquisa, sobre a
inadequação entre a atividade lúdica e o rigor científico dos discursos que
pretendem estudá-la.
Norval Baitello Jr (1997, 58), a partir
das ideias de Walter Benjamin (1985), afirma que essa dificuldade metodológica
apenas espelha a dicotomia cultural e cognitiva entre o mundo adulto (e a
lógica das "coisas necessárias") e o universo infantil (e do
"aparentemente supérfluo").
Winnicott (1975) é o grande estudioso do
Brincar e deste universo como um espaço alternativo à realidade imposta pela
cultura. A alfabetização e o aprendizado das quatro operações matemáticas
básicas exige concentração e disciplina. Com elas, surge o mundo sério dos
adultos, em que os atos têm consequências e o lúdico é visto como uma
irresponsabilidade.
Edgar Morin (1979:116-117) crê que a
construção histórica do Homo Sapiens (homem do saber racional) teve como efeito
colateral o (sub)desenvolvimento do Homo Demiens (homem-louco). O primeiro
corresponde ao universo adulto e o último, ao mundo da desordem e
irracionalidade reprimida no inconsciente em seus diferentes aspectos.
Vilém Flusser (1998) elabora a noção de
'homo ludens', como a superação dessa dicotomia entre razão e loucura e,
acrescentamos, como um retorno ao nossa criança interior. Além disso, Flusser
caracteriza o 'modo de ser brasileiro' como um protótipo global do homo ludens,
que não se identifica nem com a vitória dos colonizadores nem a derrota dos
colonizados, mas tem como estratégia de longo prazo a resistência criativa à
aculturação colonizadora.
Porém foi Ivan Bystrina (1995) quem
melhor definiu o papel cognitivo da atividade lúdica em relação ao pensamento
lógico. Para ele, há três níveis inter-relacionados de codificação de
mensagens.
·
O código
primário, formado através de sinais
simples e se organizam a partir da experiência e de regras predeterminadas dos
sistemas vivos em sua evolução. Chamamos esse código de BRINCAR.
·
O Código
secundário, uma consciência coletiva
através de signos construídos a partir de uma estrutura comum, um sistema
institucional de cognição coletiva – para o qual é necessário ESTUDAR.
·
E o Código
terciário representa um nível de codificação cultural, para além das
instituições sociais, e que constitui em uma “segunda realidade” para perpetuar
mensagens para futuras gerações.
Esta “segunda realidade” formada por
nossos sonhos e desejos profundos está presente no JOGAR e resulta da perda de
nexo reconhecível com as necessidades imediatas de sobrevivência. A segunda
realidade é o "não-sério" e os jogos são uma das portas deste
universo simbólico (ao lado do sonho, das doenças mentais e do extase místico
induzido). A classificação de Bystrina equivale a dizer que o Brincar
corresponde ao corpo e a mídia primária; o Estudar, à linguagem estruturada e a
mídia secundária; e o Jogar, à simulação de risco no futuro e aos meios de
comunicação. A segunda realidade tem o objetivo de antecipar e simular
situações possíveis de se configurar. É a simulação dos futuros possíveis que
fornecem probabilidades para o presente se organizar.
A teorização sobre jogos
começou com os gregos, levando em conta a forma como o inesperado ou o acaso se
manifestam. Nesse sentido, existem quatro tipos ideais de jogos: Agon, Alea,
Mimicry, Ilynx.
·
Agon, os Jogos de Azar (a roleta, por exemplo). O
ruído aqui é Objetivo e equivale ao acaso. Calcula-se a probabilidade (1/6 de
chances em jogo de dados, por exemplo) e compara-se com os resultados
empíricos. Obtém-se, então, um quadro analógico entre um modelo ideal (as "condições
iniciais") e os resultados.
·
Alea, os Jogos de Adivinhação (como o jogo de
búzios). O ruído é Subjetivo e dificulta a comunicação com o futuro. Aqui não
existe um "resultado errado" ou discrepante do modelo, todo ruído é,
por definição, ignorância de quem não entende.
·
Mimicry, os Jogos de Performance são aqueles em que o
desempenho individual é determinante. O ruído aqui é, em parte ambiental, em
parte cognitivo. O golfe, o surf e o "jogo de paciência" são alguns
dos jogos que combinam acaso e autoconhecimento. Para estudar tais jogos é
preciso tanto considerar as variações e discrepâncias probabilísticas de cada
jogo (compreendido como um conjunto de regras e possibilidades lógicas) como
também os diferentes níveis de intencionalidade e consciência dos jogadores.
·
E,
finalmente, Ilynx, os Jogos Competitivos, que tanto podem ser de
estratégia pura (como o xadrez, por exemplo); como baseados na força, na
velocidade ou em outras qualidades físicas e psicológicas. Estes jogos é que
geralmente são estudados na chamada Teoria de Jogos de Soma Zero. O ruído aqui
é Intersubjetivo e consiste em uma forma enganar o adversário ou de ser
enganado por ele.
Na prática a maioria dos
jogos é uma combinação dessas modalidades ideais. Um jogo de pôquer ou de
futebol implica tanto em sorte (ou escapar ao ruído objetivo), assertividade
(ou não se confundir com o próprio ruído subjetivo) e blefe (ou enganar e não
ser enganado pelo ruído intersubjetivo). Nesta classificação, o interessante é
a diferença de tipos de ruído. Nos primeiros jogos (de Azar, de Adivinhação e
de Performance) o ruído resulta de nossa própria ignorância e corresponde à
relação entre o homem e a natureza; enquanto os jogos competitivos (ou de soma
zero) o ruído é utilizado para enganar o adversário e corresponde a relação dos
homens entre si (WIENER, 1954).
Teoria matemática dos jogos
Os jogos não cooperativos com soma zero se referem
especificamente aos conflitos, enquanto os outros tipos de jogos correspondem à
atividade lúdica em si. Os jogos competitivos são o principal objeto de estudo
da teoria matemática dos jogos. Como vimos, ela é a análise lógica de qualquer
situação na qual apareça um conflito de interesses, com a intenção de encontrar
as opções ótimas para que, nas circunstâncias determinadas, consiga-se o
resultado desejado.
A teoria tem três
gerações diferentes: Von Neumann & Morgenstern, os criadores da Teoria dos
Jogos; Anderson & Moore, responsáveis pela passagem da teoria clássica para
a moderna caracterizada pela ideia de 'informação incompleta'; e Robert Aumann,
responsável pela noção de racionalidade bayesiana, que amplia a incerteza no
cálculo das escolhas.
Os matemáticos John von
Neumann e Oskar Morgenstern (1944) lançaram as bases da teoria em Theory of Games and Economic Behavior,
que interpretava as escolhas racionais e os acontecimentos sociais por meio dos
modelos de jogos de estratégia, ou seja, diante de uma certa gama de opções, os
agentes escolheriam aquelas estratégias de ação que lhes fossem mais vantajosas
de acordo com um cálculo acerca de sua probabilidade e satisfação máxima de sua
utilidade.
Uma estratégia é a lista
de opções ótimas para cada jogador, em qualquer momento do jogo. Para poder
deduzir as estratégias ótimas sob diferentes hipóteses quanto ao comportamento
do resto dos agentes, é necessário analisar vários aspectos: as consequências
das diversas estratégias possíveis, as possíveis alianças entre jogadores, o
grau de compromisso dos contratos entre eles e o grau em que cada jogo pode se
repetir, proporcionando a todos os jogadores, a informação sobre as diferentes
estratégias possíveis.
Von Neumann &
Morgenstern tinham o projeto de "construir uma teoria inequívoca da
racionalidade para situações cujo modelo é um jogo, onde toda ação está
condicionada em alguma medida pela expectativa das reações que ela pode
engendrar". Calcada sobre alicerces matemáticos, a Teoria dos Jogos propôs
uma nova maneira de formalizar os princípios da ciência política, a partir do
comportamento e preferências subjetivas.
Com Anderson & Moore
(1962), surgem as probabilidades subjetivas e a matematização dos conflitos se
torna mais psicológica. Eles comparam a matemática dos jogos à abordagem
comportamental através da analogia entre o jogo e o enigma (puzzle). O puzzle
caracteriza uma situação de incerteza externa, em que há algo que se ignora e
cujo conhecimento implica na solução do problema; enquanto no jogo há uma
situação de incerteza interna, nas quais as próprias tentativas de se alcançar
uma solução afeta os termos do problema que se quer solucionar. A ignorância
dos jogadores passa a ser estimada como ruído. Troca-se o modelo de dois
jogadores completamente informados em uma racionalidade coletiva perfeita por
um modelo múltiplo em que a intenção e as expectativas (individuais,
corporativas e/ou públicas) em relação aos outros passam a ser decisivas.
Com Robert Aumann (1987),
a teoria matemática dos jogos dará um novo passo, combinando probabilidades
lógica e subjetiva dos jogadores em seu modelo e adotando definitivamente as
ideias de 'mundo aberto' e 'observador externo'. Aumann amplia o papel da
incerteza porque não distingue jogo e puzzle, não faz distinção entre o ruído
externo e o intersubjetivo. Neste modelo, o observador é sempre um
meta-jogador.
Com isto, o Jogo, então,
passa a ser uma questão de (auto) Conhecimento. Aumann observa que, levando em
conta um determinado número de ações interdependentes, não há um único
resultado final, mas sim um número indeterminado de soluções possíveis, de
equilíbrios relativos para o sistema. O número de possíveis “soluções” se
multiplica bastante se admitirmos que as pessoas reais geralmente busquem
táticas suficientes para a realização de suas metas imediatas e não estratégias
ótimas. A metateoria de Aumann integra uma racionalidade econômica como tática
de todos à racionalidade estratégica de alguns. Para lidar com esta
complexidade de resultados possíveis, introduz-se a noção de 'informação
imperfeita' por meio da distinção entre incerteza e risco: enfrentando o risco,
os jogadores são capazes de atribuir probabilidades aos vários resultados, ao
passo que, confrontadas com situações de incerteza, não são capazes de fazê-lo.
Surge assim o cálculo da utilidade esperada ou do valor estimado de cada ação
quando enfrentam o risco. Atualmente versão de Aumann da teoria de jogos envolvendo cooperação
entre concorrentes e negociação de conflitos) tem aplicações na área de ciência
política e relações internacionais, ganhando prêmios de Nobel de economia em
1994 e 2005.
Com base nesse resumo da
teoria dos jogos, pode-se ver que sua vantagem é a forma como integra as
relações entre micro/macro, ação/estrutura e indivíduo/instituição em um único
modelo. A teoria dos jogos é uma teoria viva, que afeta o mundo que estuda. No
entanto, a grande desvantagem da matematização é a descontextualização
histórica e cultural dos jogadores.
De forma que a teoria dos
jogos vale mais como uma ferramenta heurística do que como uma teoria para
solução de conflitos. Essas limitações podem ser minimizadas pela sua inclusão
em teorias mais abrangentes e complexas, observando a contextualização dos
jogadores em situações históricas e culturais concretas e considerando também
os valores culturais e as normas sociais no comportamento pessoal.
jogos, política e mídia
Pierre
Bourdieu também comparou (metaforicamente) sua teoria dos campos aos jogos, em
que os agentes disputam por prêmios dentro de um regime de regras pactuadas,
que eles fazem apostas. E da mesma forma que cada jogo tem suas regras de funcionamento,
cada campo social (política, arte, economia) também teria um conjunto
específico de regras. Porém, Bourdieu também criticou (em seus estudos sobre o
capitalismo mercantil em sociedades coloniais como a Argélia) as teorias
tradicionais dos jogos por acreditarem que todos os agentes são motivados
universalmente pelo cálculo de custo/benefício.
Efetivamente, podemos
comparar o campo a um jogo (embora, ao contrário de um jogo, ele não seja o
produto de uma criação deliberada e obedeça a regras, ou melhor, a
regularidades que não são explicitadas e codificadas). Temos assim móveis de
disputa que são, no essencial, produtos da competição entre jogadores; um
investimento no jogo, illusio (de ludus, jogo): os jogadores se deixam levar
pelo jogo, eles se opõem apenas, às vezes ferozmente, porque têm em comum
dedicar ao jogo, e ao que está em jogo, uma crença (doxa), um reconhecimento
que escapa ao questionamento [...] e essa colusão está no princípio de sua
competição e de seus conflitos. Eles dispõem de trunfos, isto é, de
cartas-mestra cuja força varia segundo o jogo: assim como a força relativa das
cartas muda conforme os jogos, assim, a hierarquia das diferentes espécies de
capital (econômico, cultural, social, simbólico) varia nos diferentes campos
(Bourdieu apud, BONNEWITZ: 61).
O
conceito de Campo Social (e sua analogia com os jogos) é o que melhor permite
entender a interação atual entre a mídia e a política, campos que se guiam por
lógicas diferentes, mas que passaram interferir um no outro. Bourdieu tratou –
de forma superficial e preconceituosa, diga-se de passagem - do impacto do
jornalismo sobre os campos político e acadêmico, no polêmico livro Sobre a televisão (1997). Tratava-se de
uma (tentativa de) defesa da autonomia desses campos sociais contra sua
midiatização. É um texto militante que deixa em aberto à exploração analítica
de vários pontos.
Sugere-se
aqui outro modelo: observar a intercessão, a autonomia e reciprocidade entre os
campos da mídia e o campo da política. O campo político é o lugar em que se
geram, na disputa entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos
políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos e eventos,
entre os quais os cidadãos comuns são chamadas a debater e decidir, durante as
eleições. É, portanto, um campo fechado (em que seus agentes internos interagem
na maioria do tempo), que se abre sazonalmente a todos, durante os breves
momentos eleitorais.
O
Campo da Mídia é o ambiente de visibilidade simultânea, que funciona segundo
suas próprias regras e subverte a lógica de premiação de outros campos. A mídia
ocupa uma dupla posição em relação à estrutura social, ela é tanto um Campo
próprio (em que os atores sociais debatem seus problemas) como também um agente
no Campo Político mais geral.
Graças a essa ambiguidade
funcional, os meios de comunicação são 'meta jogadores', que 'bancam' a
democracia. Os meios de comunicação são instituições políticas
de mediação das elites com o público, mas não substituem os governos, os
parlamentos, os partidos e os demais atores políticos - apenas se sobrepõem a
eles, 'dando as cartas do jogo', selecionando e interpretando todas as
informações de um campo para os outros. O resultado imediato dessa ambiguidade institucional
é que, enquanto há abordagens midiafóbicas, que enfatizam o aspecto
negativo das mudanças, ressaltando o campo social como o conjunto da esfera
pública e a mídia como um agente social nefasto; outras, midiafílicas,
percebem apenas o aspecto positivo, enfatizando a mídia como um campo aberto
para o diálogo direto entre os agentes políticos e o público.
A
maioria dos autores contemporâneos postula uma posição intermediária: os campos
da Política e da Comunicação se interpenetram numa relação recíproca, mais
ambos preservam suas especificidades; nem a política se dilui frente ao efeito
da mídia, nem a mídia é um mero instrumento da política ou alienação social.
O
discurso político atual realmente se organiza pela gramática específica da
linguagem da mídia, com ênfase na novidade, no inusitado e em padrões
estéticos. O marketing adapta o discurso político às preferências do público
através de pesquisas e se baseia na similitude entre audiência e eleitorado (ou
entre a opinião pública e o mercado consumidor). E não se trata apenas do
discurso político (mediado), mas a política entendida como prática social
passou a se orientar parcialmente pela lógica da visibilidade midiática e de
seu capital simbólico.
Observando
a inter-relação entre os dois campos podem-se localizar vários elementos: a) o
que há de político na comunicação (o subcampo jornalístico); b) o que há de
comunicação na política (a imagem pública e a propaganda política); c) o que há
na política que não está na comunicação (a negociação invisível); d) o que há
na comunicação que não está no campo político (o simbolismo aparentemente
apolítico do mundo do entretenimento).
Pode-se
dizer, no entanto, que os campos da comunicação e da política estão em
convergência, que sua intercessão está aumentando ('a implosão da esfera
pública' prevista por Habermas) e que as áreas em que os campos mantem sua
própria lógica tendem a diminuir (com a transparência virtual das negociações
hoje invisíveis e com a 'politização' de celebridades, atletas e artistas).
Vários autores contemporâneos chamam essa convergência de 'espetacularização da
política' e consideram que a política tornou-se mais teatral.
Porém,
a convergência entre os campos da comunicação e da política são ainda
insuficientes para explicar o fenômeno da gamificação da democracia, surgindo a
necessidade “de um terceiro convidado”: o mundo dos negócios (GOMES, 2004 p.
129).
Essa
ampliação sociológica extrapola o âmbito da perspectiva discursiva, permitindo
um ângulo mais abrangente por um lado. E, por outro, o mercado é quem gamifica
a esfera pública e a sociedade civil, investindo na competição de seus agentes.
O jogo social é travado em três campos: o econômico, o político e o
psicocultural. E a interação convergente entre os campos da mídia, da economia
e da política, assim, reorganiza os elementos internos e promove a gamificação
social.
Democracia e Game
Democracia e risco
Para Rousseau, democracia
não é para os homens. Somos violentos, passionais e mentirosos. A democracia é
um governo para os deuses. A verdadeira relação da democracia com os jogos olímpicos
não é que essa forma de governo se assemelhe ao jogo pela regra que se deve
respeitar, mas porque ambos exigem dos participantes a superação de seus
limites em um constante aperfeiçoamento, porque em ambos os homens aspiram a
ser deuses.
Há uma grande semelhança entre a democracia e os jogos, em suas origens.
Mas, exatamente em que? Ambos são processos de tomada decisões em comum?
Regimes em que se mantem a unidade sem perder a diversidade? Há algo maior e
mais interessante: tanto a democracia como os jogos exigem a superação
individual e coletiva das dificuldades; ambos obrigam os homens a dar o melhor
de si, domesticando o ruído através da consciência. A democracia e os jogos
devem nos levar a ser o melhor possível.
Jurgen Habermas (1984, 2012a,
2012b)
nos traz três temas conexos: a ampliação da esfera pública pela sociedade
civil; a “ação comunicativa” diferenciada da “ação instrumental” e da “ação
estratégica”; e a “democracia deliberativa”. Habermas entende que a racionalidade instrumental é a lógica
objetiva das coisas, a ação determinada pela infraestrutura econômica; a
racionalidade estratégica dos sujeitos individuais e coletivos corresponde a
ação política e seus condicionamentos superestruturais; e a ação comunicacional
é a esfera da intersubjetividade coletiva e da interação inconsciente, que está
sujeita simultaneamente às racionalidades instrumental e estratégica.
A
noção de democracia deliberativa é a união da ação comunicativa com a
racionalidade estratégica contra a razão instrumental, ou a ampliação da esfera
pública pela sociedade civil contra o mercado.
Nos
anos 90, a ideia de democracia deliberativa - estruturada em um tripé entre o
Estado (o campo da igualdade jurídica), o Mercado (o campo desigualdade
econômica) e a Sociedade Civil (o campo das comunidades) - será retomada por
Anthony Giddens e John B. Thompson. Porém, ao invés de pensar ação socialmente
estruturada por uma sociedade fixa e permanente (como faz Habermas), os autores
contemporâneos pensam em práticas sociais que se produzem e reproduzem de forma
complexa.
Giddens
e Thompson, por exemplo, não acreditam que na secularização absoluta das
tradições e sim que a modernidade convivem com o poder simbólico de modo
diferente.
Para
Giddens, a vida social tradicional é voltada para o passado, para repetição de
ciclos históricos; e a modernidade inicia uma nova concepção de tempo-espaço em
que a reflexividade é voltada para o presente e para o futuro. A modernidade
gera ‘bolhas’ tradicionais, mas no geral, produz incerteza pela pluralidade de
opções que oferece. Essa falta de certeza e de segurança, aumenta ainda mais a
reflexibilidade tanto da simulação de situações de risco como da invenção de
‘novas tradições’ através das mídias.
A
democracia, assim vista, não é um mito do discurso político, ela é 'a' utopia
(o projeto de uma sociedade perfeita sempre inacabada) por excelência. Os mitos
estão sempre ancorados no passado imemorial, na tradição, na origem anterior à
história; a utopia, ao contrário, está projetada no futuro, em um tempo que
ainda não chegou no 'fim da história'. E, no presente, na reflexibilidade
moderna, a democracia real é sempre imperfeita e imprevisível, arriscada e
manipulada pelo poder simbólico.
Thompson
aponta que os meios de comunicação passaram a mediar a percepção entre tempo e
espaço, estabelecendo uma centralidade em relação as outras instituições. A
mídia na modernidade sequestrou o 'lugar da fala' da autoridade pública e
religiosa. Na pré-modernidade, a informação era distribuída unicamente a partir
dos estados e das igrejas. Ao se estabelecerem instituições de mediação com
autonomia relativa, o 'monopólio da fala' foi terceirizado. Assim, a mídia é,
ao mesmo tempo, um campo para o diálogo entre os atores políticos e o público;
e também mais um ator político invisível com interesses próprios em um contexto
social mais amplo, que seleciona, hierarquiza e dá visibilidade aos
acontecimentos históricos. Os meios de comunicação, assim, desempenham um duplo
papel: por um lado, organizam as identidades simbólicas através de narrativas
neo tradicionais; e, por outro, constroem de modo parcial e simplificado a
realidade social que contextualiza a vida dos atores visíveis.
Giddens
vê a democracia não apenas como uma forma de governo, mas também como um método
de relacionamento entre pais e filhos, entre grupos de amigos, entre marido e
mulher (GIDDENS, 2003: p.61). A democracia não consiste simplesmente na regra
de maioria (pois assim seria impossível existir democracia entre duas pessoas
com interesses diferentes, como professor e aluno, por exemplo) ou o direito ao
dissenso, mas sim na negociação dos interesses divergentes e das próprias
regras de negociação. A democracia vista desse modo não é o predomínio formal
da maioria, mas a tomada de decisões através das regras negociadas entre os
diferentes pontos de vista que formam uma unidade de ação.
A
democracia implica ainda em levar em considerações os sentimentos, os próprios
e os dos outros. E isto é bastante arriscado! Os casamentos eram arranjados
entre famílias, hoje cabe a cada um, com base nos sentimentos, decidir com que
vai se casar. A família se destradicionalizou, mas também se democratizou
emocionalmente. Daí a noção de ‘democracia emocional’, que leva em conta bem
estar de si e do outro. O risco produz comportamentos individualistas. A única
saída para democracia é se democratizar ainda mais, fazendo com que todos sejam
autônomos e responsáveis através de políticas públicas contra a dependência,
seja química, familiar, emocional, econômica ou cultural. Porém, quanto mais as
pessoas conquistam autonomia individual; menos eles querem participar das
decisões coletivas – eis o paradoxo da democracia.
O paradoxo da democracia de Giddens é semelhante ao equilibrio de Nash. Modelo matemático em que apesar dos participantes não cooperarem, é possível que a busca individual da melhor solução conduza o jogo a um resultado estável, não havendo incentivo para mudanças. Ou seja: o governo dos piores, perpetuado pela corrupção e pela omissão dos melhores e da maioria.
A vida não é um jogo entre máquinas
calculadoras programadas com objetivos variados. Somos tão irracionais que essa
metáfora não nos cai bem. Além disso, nem todas disputas são amistosas. Em um
jogo, o objetivo é vencer o adversário. Em uma luta, o objetivo é derrotar e
até destruir o inimigo. O jogo é uma 'atividade competitiva' dentro de uma
'prática social cooperativa'.
A vida não é um jogo. Os jogos é que são
simulações da vida. A grande diferença entre a vida e o jogo são seus riscos. Na
vida, há o risco de morre e de perdas irreversíveis. No jogo, o perigo é não
ser amado, perder a confiança em si, as posses, a naturalização da
inferioridade, a honra.
A vida não
é um jogo, mas está se tornando um. E como será, dependerá de nossa própria
capacidade de jogar.
Traçou-se
aqui um esboço de uma teoria geral dos jogos, abordando o lúdico como fator
simbólico. Essa perspectiva mais geral - ancorada em Kamper, Baitello, Morin e
Bystrina – releva a íntima relação dos jogos com o universo simbólico. Relação
íntima que Wiener subdividiu em duas, levando em conta a natureza do ruído (o
acaso, a incerteza, o risco), se é resultado da inconsciência dos jogadores ou
se é proposital e deliberado em função da disputa do próprio jogo.
Detalharam-se também as diferentes versões da teoria matemática dos jogos. Em
seguida, a sociologia de Bourdieu foi apresentada como uma teoria capaz de
contextualizar as teorias dos jogos. Neste cruzamento teórico, reelaborou-se o
modelo de convergência entre os campos da política e da mídia e sugeriu-se
também a possível aplicação das diferentes versões das teorias matemáticas dos
jogos ao modelo dos três campos, colocando a mídia na posição de 'meta
jogadora' ou de 'banca' para explicar o caráter central que os meios de comunicação
desempenham na sociedade contemporânea.
Trata-se
de observar, no modelo da teoria dos jogos, as três constantes em relação à
ação política (o dinheiro, a ideologia e a imagem). Sendo que essa última é a
mais complexa porque envolve sentimentos de proximidade, confiança, falsa
intimidade e sobretudo porque aumenta o grau de imprevisibilidade do jogo, seja
em eleições (o voto midiático é indeciso até a última hora), seja na vida
política cotidiana (em que as decisões são tomadas em virtude do regime de
visibilidade).
A
política se midiatizou, passando a se organizar pela gramática dos meios de
comunicação (com ênfase na novidade, no inusitado e em padrões estéticos),
produzindo uma cultura centrada no consumo de imagens, gerando novas
competências, como marketing (que adapta a política às preferências do público
através de pesquisas) e semelhança aparente entre a opinião pública e o mercado
consumidor.
O
resultado? O crescente desinteresse do público mais informado; o caráter
artificial da opinião pública; a perda de autenticidade dos agentes e das
instituições de representação política; a substituição parcial dos partidos e
das instituições políticas representativas pelos meios de comunicação no debate
e na defesa dos interesses da população. E, principalmente, o aumento
exponencial do risco (de colapso do sistema político da democracia parlamentar)
e a ‘gamificação’ da política, em que os atores disputam as apostas do público.
A noção de 'sociedade de risco' (BECK;
LASH; GIDENS, 1997) estabelece que nossa cultura promove o máximo de
autonomia dos indivíduos. Desafiamos a morte para nos tornarmos pessoas
melhores, com corpos mais capacitados e mentes mais disciplinadas.
segunda-feira, 15 de abril de 2024
A vida como jogo
Uma pergunta simples: a vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores e perdedores? Acredito que não, mas que talvez a vida esteja se tornando um jogo. Ou que talvez ela seja um jogo que eu jogue sem saber. Eis um quebra-cabeça de minhas ideias, agora formando uma imagem maior e mais abrangente que o universo narrativo: o lúdico.
O lúdico existe antes do outro, antes da história/escrita, não é exclusivamente humano. Está na base pré-verbal da atividade cognitiva. Os jogos aqui eram ritualizações das narrativas, memória e atualização das crenças arcaicas.
Com a escrita e a história, há uma domesticação do brincar pela necessidade de atenção contínua, surgem as regras e os jogos. O lúdico passa a ser mais competitivo e se configura como uma estratégia de poder. Os jogos passam a sublimar conflitos e se tornam jogos de poder.
Então se, por um lado, o jogo foi sendo progressivamente domesticado pelo poder e suas narrativas; por outro, o lúdico permaneceu parcialmente selvagem (a incerteza lúdica) e absorveu a estrutura linguística e cultural que o enquadrava. E agora, na pós história? O lúdico se tornou 'gamificação'? A gamificação das práticas sociais ameaça a democracia como método de decisão coletiva?
Baixe aqui.
Prece do Jogador
Seus dados divinos
Incal
Emely Luize Dos Santos Brito
Uma colaboração célebre
entre o escritor chileno Alejandro Jodorowsky e o artista francês Moebius, a
série em quadrinhos “Incal” foi publicada na década de 1980, narrando uma
jornada surreal e filosófica que mistura ficção científica, fantasia e comentários
sociais de maneira única.
Contextualizando, os anos
1980 foram marcados por eventos históricos importantes como a Guerra Fria, o
que por ventura influenciava e se mostrava em muitas narrativas de ficção.
Havia uma tensão global que se refletia em vários formatos de arte.
O crescimento da cultura geek na época também foi importante para
a perpetualização de “Incal”, já que, com o surgimento das convenções, se
fortaleceu o mercado de quadrinhos e a popularização de personagens icônicos
como Batman, Superman, X-Men, entre outros.
A série em quadrinhos
“Incal” é ambientada em um universo distópico e surreal, e sua história segue
as aventuras de John DiFool, um detetive particular de moral duvidosa que acaba
se envolvendo em uma trama cósmica após encontrar o Incal, um objeto de poder
incomensurável e cobiçado por muitos, como o antagonista Homem do Bubo, ser grotesco que
busca controlar o Incal para seus próprios fins maléficos. Sua presença ameaça
o equilíbrio do universo e coloca John DiFool em perigo constante.
Ao longo da narrativa,
DiFool é arrastado para uma jornada repleta de perigos, enigmas e reviravoltas,
enquanto enfrenta uma miríade de personagens estranhos e poderosos, incluindo
seres divinos e entidades cósmicas como Metabarão e Tanatah. Nesse mundo
caótico e cheio de intrigas, ele se vê confrontando questões existenciais
profundas, como o propósito da vida, a natureza do poder e a busca pela
iluminação espiritual.
Através de uma mistura
única de ficção científica, fantasia e filosofia, "Incal" mergulha o
leitor em um turbilhão de imaginação e reflexão, explorando temas universais
como moralidade, livre arbítrio, religião e a luta entre o bem e o mal. Com sua
narrativa densa e visualmente impactante, a série cativa e desafia os leitores,
oferecendo uma experiência única e inesquecível no mundo dos quadrinhos.
É inegável que a arte de
Moebius é deslumbrante e altamente imaginativa, combinando linhas fluidas e
detalhes complexos para criar paisagens e personagens impressionantes. Porém, a
narrativa surrealista de Jodorowsky se mostra complicada e abstrata em muitos
momentos, o que pode confundir quem prefere tramas mais lineares, sem mencionar
a abordagem de temas e imagens que consideram controversas ou perturbadoras
para alguns leitores.
O maior incômodo na
leitura, no entanto, são as representações que refletem os padrões machistas
que permeavam a cultura da época em que foram produzidas. A maneira como
algumas personagens femininas são retratadas, muitas vezes como figuras
estereotipadas e hipersexualizadas, pode reforçar ideias prejudiciais sobre o
papel das mulheres na sociedade e contribuir para a objetificação do gênero
feminino. Pode ser citada como exemplo a personagem Animah, que apesar da
importância na narrativa e no desenvolvimento para que a história do DiFool se
desenrole, é vista muitas vezes sem roupa e com um corpo com curvas exageradas
e nada condizentes com um corpo feminino real. A forma como os personagens
masculinos interagem com as mulheres em certas situações também são ações machistas
e sexistas, reproduzindo dinâmicas de poder desiguais e comportamentos
inadequados.
É importantíssimo pontuar
que as mulheres são frequentemente sexualizadas nos quadrinhos por uma série de
razões complexas. Uma delas é a tradição histórica na indústria dos quadrinhos
de criar personagens femininas com atributos físicos exagerados, como corpos
voluptuosos e roupas provocativas, para atrair um público que até pouco tempo
era majoritariamente masculino. Isso pode ser resultado da predominância de
homens na criação dessas histórias e na liderança das editoras de quadrinhos
por décadas.
Também vale ser
mencionado a gama de personagens de culturas e etnias diferentes na história
aqui apresentada. Mas, apesar de muitos considerarem isso como
representatividade positiva, o que a série realmente apresenta são estereótipos
em suas representações de personagens e cenários, especialmente em relação a
culturas não ocidentais.
Mas, no geral, apesar de
todas as suas problemáticas e contradições, "Incal" é reconhecido
como um marco e aclamado como uma obra-prima dos quadrinhos europeus, tanto
pela sua narrativa desafiadora quanto pela sua arte excepcional, e continua a
ser uma influência significativa e importante para muitos artistas e escritores
no mundo dos quadrinhos.